“Estamos aqui para ajudar nossas famílias que ficaram lá! Essa é a nossa
responsabilidade”, afirma Ezechiel Charles, um dos 24 haitianos que
foram trazidos para Montenegro, para trabalhar na empresa Agrogen. Ainda
em processo de adaptação com a língua e, principalmente, com o frio, os
novos “gaúchos” trazem no olhar as marcas do caminho trilhado até o
Brasil, e no sorriso a esperança de dias melhores.
Ivia Olivier,
Mariciledesir, Aldajuste Nasson e Jean Wener Chal, junto com Ezechiel,
acreditaram nas promessas de sucesso, dinheiro e prosperidade que
circulavam em seu país a respeito do Brasil. Nenhum deles se conhecia,
porém, todos compartilhavam o sonho de ajudar a família a sobreviver com
os ilusórios salários de cerca de R$ 3 mil supostamente pagos por aqui.
Vieram de forma independente, sem contrato ou vinculação com qualquer
empresa, sem lugar para ficar ou contato de conhecido brasileiro que
pudesse auxiliar. Um pouco de dinheiro para pagar as passagens e muita
vontade de mudar de vida era tudo o que traziam na bagagem.
Saíram do
Haiti em janeiro deste ano sem data para retornar. Fizeram, de avião,
uma rota bastante conhecida entre os haitianos. Passaram pela República
Dominicana, Panamá e Peru, onde entraram em terras brasileiras através
do Acre. “Nosso país é muito pobre. Já era antes do terremoto, mas ainda
conseguíamos levar a vida. Depois da catástrofe, nos vimos obrigados a
deixar o Haiti para buscar melhores condições. Era a única esperança”,
explica Ezechiel.
No trajeto até a fronteira do Peru com o Brasil,
tudo ocorria bem até perceberem que o suborno de peruanos, para
atravessar o limite entre os dois países, era rotina. “O governo peruano
não deixou eles entrarem aqui. Vieram de forma ilegal, com os coiotes.
Eles contam que pagaram 100 dólares para poderem atravessar a
fronteira”, comenta Charles Eduardo Stefanello, coordenador de produção
da Agrogen, que foi buscá-los no Acre. O impasse para sair do Peru e
chegar à Brasiléia, cidade brasileira na fronteira com o estado
nortista, custou todo o dinheiro que traziam consigo e três meses
dormindo na rua e trabalhando exclusivamente por comida até a situação
se resolver.
Pelo mundo em busca de um sonho maior
Ezechiel
tem apenas 25 anos. Cursou até o segundo ano da faculdade de Ciência da
Computação, no Haiti. Ele conta que, antes do terremoto que devastou
seu país, em janeiro de 2010, a vida era difícil. Entretanto, após a
catástrofe, a situação se tornou insustentável.
“Depois do tremor,
tivemos medo que houvesse outro e fomos obrigados a sair do país e
buscar outra alternativa”, lembra. Emocionado, ele afirma que perdeu
pessoas queridas no desastre e que a pobreza, o desemprego e a violência
atingiram níveis assustadores e sem perspectivas de solução.
O
jovem é um dos únicos imigrantes que possui um grau de instrução mais
elevado. É tido como um dos líderes por ter conhecimento de outras
línguas, entre elas a espanhola e o inglês, o que o torna um facilitador
da comunicação entre os funcionários brasileiros e os haitianos, na
Agrogen.
Curioso, ele faz perguntas sobre o Brasil, questiona como é
viver em São Paulo e se mostra esperançoso com a vida que se projeta
daqui para frente. “O motivo principal de estar aqui é juntar dinheiro
para conseguir continuar meus estudos e ajudar a minha família”, afirma.
Concluir a faculdade deixou de ser algo possível para se tornar um
sonho distante.
Os outros, em sua maioria, eram comerciantes em suas
respectivas cidades e, como Ezechiel, perderam junto com parentes e
bens materiais a perspectiva de felicidade pela qual vinham batalhando
até perderem tudo com o terremoto. O que restou, além dos escombros,
foram esperança e força. Muita força.
Ações em nome de um futuro
Jean
Chal tem 40 anos. Tem, também, nos olhos, marcas de saudade. “Tenho
esposa e três filhos. Como faço para trazê-los para cá?”, questiona,
auspicioso. Charles comenta que os trouxe a Montenegro para adquirirem
um celular cada um. Jean gastou todos os créditos que colocou, no dia da
compra, para falar com a família.
Marcos Antonio Matte, líder de
produção da Agrogen, também conta que frequentemente é solicitado para
ajudar a realizar ligações para o Haiti. “Esses dias, um deles vibrava
ao conseguir completar a ligação. Acenava para mim com os polegares,
sorrindo, por ter conseguido”, lembra.
O coordenador de produção
também menciona outra moça do grupo, que quase desistiu do emprego na
granja por achar que não conseguiria trabalhar na função para qual foi
designada. “Ela disse que nunca tinha trabalhado na vida. Provavelmente a
família tinha um poder aquisitivo maior para ela nunca ter precisado
batalhar por dinheiro”, especula Charles.
De fato, a história
diferente que cada um conta é uma amostra da realidade difícil que paira
sobre o pequeno país, e o quanto de suas vidas está sendo sacrificada
nessa tentativa de recomeçar. Quando foram propostos para o emprego no
Rio Grande do Sul, havia 250 haitianos no alojamento, em Rio Branco, no
Acre. Os 24 que se interessaram em vir para o Estado tiveram seus
documentos regularizados na imigração, ganharam visto e carteira de
trabalho. Agora são como qualquer outro cidadão, com direitos e deveres,
porém, alguns medos e receios a mais. “Tem racismo no Brasil? Se algum
dia eu for vítima de preconceito aqui, volto pro Haiti”, afirma
Ezechiel. “Os brasileiros são sensíveis, compreensivos, nos ajudam e são
alegres como nós”, termina.
Recrutamento foi até o Acre
A
dificuldade de contratar mão de obra para algumas unidades produtivas
aqui no Estado, e também em Minas Gerais, fez a Agrogen buscar uma
alternativa inusitada. Foi assim que surgiu a ideia de dar uma
oportunidade de trabalho para haitianos. A seleção foi realizada em
abril, em Rio Branco (Acre)e, desde o final do mês passado, eles se
encontram em solo gaúcho, em três unidades da empresa.
A coordenadora
de Recursos Humanos da Agrogen, Vanessa Lermen, conta que leu uma
reportagem sobre a migração de haitianos para o Brasil em busca de
emprego e uma nova vida, já que seu país fora devastado por dois
terremotos em 2010. Daí surgiu a ideia de buscar a contratação dessas
pessoas. “Eu estava no Paraná e conversando com uma consultora sobre a
dificuldade de contratar mão de obra. Então ela comentou que havia
escutado boas referências sobre a mão de obra dos haitianos. Pensamos
que seria uma ideia boa aliarmos a oportunidade de ajudarmos essas
pessoas e resolver o nosso problema com a escassez de trabalhadores, que
atinge o setor avícola”, explica.
A partir daí, foi feito contato
com o governo do Acre, que serve de porta de entrada para os haitianos
no país. “Fomos atendidos pelo secretário municipal de Brasiléia, cidade
que se especializou em acolher os haitianos que nos informou que os
mesmos estariam entrando no país por Rio Branco, sua capital. Na medida
que o governo federal fosse autorizando a entrada deles, que estavam na
fronteira do Brasil com o Peru, fariam contato para que fossemos
recrutá-los”, conta Vanessa.
A liberação da entrada dos haitianos no
Brasil foi feita apenas no dia 17 de abril, para 240 pessoas. Assim, no
dia 18 de abril, o coordenador de produção da Agrogen, Charles
Stefanello, e Juliana Coser, do setor de Recursos Humanos da empresa,
foram até Rio Branco, para selecionar e recrutar os haitianos. Dos 32
contratados, dez foram para as unidades de Montenegro, dez para São
Francisco de Paula, quatro para Triunfo e oito para Sete lagoas (MG).
Sobre o Haiti
-
O Haiti é o país mais pobre das Américas. Ao mesmo tempo, foi a
primeira república negra do mundo a declarar sua independência.
-
Cerca de 80% da população vive em situação de extrema pobreza com menos
de dois dólares por dia e situa-se em uma área no globo que é bastante
propícia a ser atingida por furações e terremotos.
- Uma das línguas
oficiais do país é o Francês, porém, apenas 10% da população a utiliza.
A maioria fala o Crioulo, língua oficial junto com o idioma da minoria.
- Desde junho de 2004, Argentina, Benim, Bolívia, Brasil, Canadá,
Chile, Croácia, Equador, Espanha, França, Guatemala, Jordânia, Marrocos,
Nepal, Paraguai, Peru, Filipinas, Sri Lanka, Estados Unidos e Uruguai
compõem as tropas que integram a Missão de Paz no Haiti. É uma
iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) para reconstruir e
estabilizar a República.
- Em janeiro de 2010, um tremor de terra
de 7 graus na escala Richter devastou o país e agravou a situação dos
mais de 10 milhões de haitianos. No desastre, pelo menos 200 mil pessoas
morreram, 800 mil ficaram feridas, 4 mil foram amputadas e quase 2
milhões desabrigadas. E esse número de óbitos só contabiliza os
sepultados oficialmente. Os que nunca foram retirados dos escombros nem
os que foram enterrados pelas famílias estão incluídos. Se contados, o
número estimado chega a quase 700 mil mortos. Foi a terceira maior
catástrofe do mundo.
CNIg aprovou concessão de vistos
Segundo
a coordenadora de Recursos Humanos da Agrogen, Vanessa Lermen, a idade
dos haitianos trazidos pela empresa para o Estado e para a cidade de
Sete Lagoas, em Minas Gerais, varia de 22 a 52 anos, sendo 26 homens e
seis mulheres.
Vanessa conta que a contratação foi realizada no
regime de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), “com todos os
benefícios legais e, em alguns casos, com acompanhamento psicológico.
Por causa de algumas denúncias de promessas não cumpridas por parte de
algumas empresas, o Ministério do Trabalho monitora todas as empresas
contratantes”, explica.
O processo de espera por uma oportunidade de
trabalho não é dos melhores. De acordo com Vanessa, em Rio Branco, os
haitianos recém-chegados recebem assistência médica, alimentação e
hospedagem em uma pousada onde cabem até 80 pessoas precariamente. “Lá,
eles fazem exame para detectar Aids, Cólera e outras doenças, além de
tomar vacinas contra Hepatite, Tétano e Febre Amarela”, conta.
Segundo
ela ainda, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), órgão ligado ao
Ministério do Trabalho e Emprego (TEM), aprovou a concessão de 1.200
vistos por ano para haitianos que pretendem migrar para o Brasil. O
documento, válido por cinco anos, dá direito de o estrangeiro trabalhar e
trazer a família para o país pelo mesmo período.
*Matéria publicada no Jornal Ibiá (Montenegro -RS) de 10 de maio de 2012, em co-autoria
com Pedro Giumelli, no qual participei fazendo a entrevista com os
haitianos.
Matéria com fotos aqui