sábado, 29 de setembro de 2012

Alteração da certidão de óbito do pai emociona filho de Herzog

Há quase 40 anos lutando para que a morte de Vladimir Herzog fosse devidamente esclarecida, a família do jornalista finalmente conseguiu legitimar a versão que defende desde 1975. Na última segunda-feira, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo comprovou e reconheceu as certezas da família sobre as causas da morte de Vlado.

De acordo com a resolução, o atestado de óbito de Herzog será retificado fazendo constar que sua "morte decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército - SP (Doi-Codi)", e não mais suicídio. Para o filho do jornalista e diretor do Instituto Vladimir Herzog em São Paulo, Ivo Herzog, o parecer constitui um resultado histórico. "Devemos lembrar que este processo foi levado pela Comissão da Verdade, que muito vem sendo criticada. Nós, família Herzog, estamos muito felizes e emocionados com esta decisão", comentou.

Para o amigo Paulo Markun, autor do livro "Meu Querido Vlado", a insistência da família, a pressão dos jornalistas, a coragem de advogados e de dois juízes mudaram o final dessa história. Ele conta que, na ocasião da morte do colega de TV Cultura, os chefes do Doi-Codi reuniram alguns poucos jornalistas que estavam presos e tentaram convencê-los de que Herzog era um agente da KGB que se suicidara pra não confessar. "Apresentaram uma história maluca, em que a direção do clandestino Partido Comunista seria feita por gente acima de qualquer suspeita, como um governador e um cardeal. Nenhum de nós acreditou", relatou.

Markun afirmou, ainda, que a versão do suicídio de Herzog foi mantida a mando do general Geisel graças a um inquérito policial-militar encomendado para confirmar o fato. "O documento tinha requintes de absurdo, como a foto que mostrava o corpo de Vlado com as pernas dobradas, pendurado numa grade onde ninguém conseguiria se enforcar", declarou.

A versão oficial, na época, foi refutada pelos movimentos sociais de resistência à ditadura militar. Uma semana após a morte do jornalista, em outubro de 1975, cerca de oito mil brasileiros participaram de uma missa ecumênica organizada por D. Paulo Evaristo Arns, pelo reverendo James Wright e pelo rabino Henri Sobel.

Três anos mais tarde, no dia 27 de outubro de 1978, o processo movido pela família do jornalista revelou a verdade sobre a morte de Herzog. A União foi responsabilizada pelas torturas e pela morte do jornalista. Foi o primeiro processo vitorioso movido por familiares de uma vítima do regime militar contra o Estado.

A deliberação do juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concede um importante precedente para que outras famílias torturadas pelo mesmo sofrimento possam fazer justiça. "Ela abre as portas para que os que perderam gente querida naquela época sigam o mesmo caminho e possam ter um documento que recupere a verdade sobre o destino daquela gente", afirmou Ivo. "O atestado de óbito afinal reescrito prova que a verdade tarda, mas aparece", concluiu Markun.

Investigação

Em junho deste ano, o Brasil alegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entidade da Organização dos Estados Americanos (OEA), que a Lei da Anistia impede que se abra no País uma investigação sobre a morte do jornalista, ocorrida em 1975.

O Brasil foi obrigado a se pronunciar oficialmente sobre o caso após parentes do jornalista e organizações de direitos humanos terem encaminhado a denúncia à Comissão Interamericana, em 2009. O pedido de investigação foi feito por quatro entidades que atuam na defesa de direitos humanos no Brasil. Elas querem que o País investigue o caso, processe e puna os responsáveis pela morte do jornalista.

No documento de resposta, o governo brasileiro diz que criou a Comissão Nacional da Verdade para apurar casos de violações aos direitos humanos ocorridos na ditadura militar e que o caso de Vlado poderia ser incluído na comissão. Na sequência, a família Herzog solicitou à comissão a retificação do atestado de óbito, que foi aceita por unanimidade pelos membros.


* Texto publicado em 26 de setembro de 2012, no Portal Terra de Notícias. Matéria Online 



sábado, 22 de setembro de 2012

Batman enfrenta Robin na disputa eleitoral de Aracaju


Acreditando na excentricidade como uma ferramenta eleitoral, diversos candidatos de Aracaju, no Sergipe, estão dispostos a montar uma verdadeira Liga da Justiça na Câmara de Vereadores da capital sergipana. Candidatos fantasiados de super-heróis apostam no bom humor dos eleitores para conquistar uma das 24 cadeiras a serem preenchidas no órgão municipal.
Dener Nascimento Cruz (PMDB) é o homem morcego do Sergipe e quer defender os direitos da população de Aracaju. “Vote em Batman, pois esse sim não vai fazer nada, nada, nada contra o povo. Só a favor”, afirma o candidato em seu momento no horário eleitoral gratuito. Inovando com bigode grisalho pouco familiar aos amantes da DC Comics, seu braço direito, Robin, também disputa um espaço na política sergipana. "Com o mundo discutindo soluções para a poluição produzida por nós, lutarei para que a cidade tenha um projeto de reciclagem organizado. Deixando Aracaju como ela deve ser: limpa e desenvolvida. Por isso, vote Robin!", pede Jaelson Gomes Mota (PSDB), 54 anos, fantasiado . Além dos heróis dos quadrinhos, Bin Laden e Chapolin também são exemplos de personagens em busca de um cargo político em Aracaju.
No sistema eleitoral brasileiro, a presença dos chamados "puxadores de voto" vem se tornando uma constante. De acordo com a legislação, os candidatos procuram somar votos para a legenda (sigla) ou coligação (várias siglas juntas). Após a votação, é verificado se o número alcançou o coeficiente necessário para eleger um ou mais candidatos, para, então, serem atribuídos os votos aos mais votados. Os votos válidos recebidos pelos partidos da coligação (nominais ou de legenda) são divididos pelo quociente eleitoral, resultando no número de cadeiras que a coligação pode ocupar. Os melhores colocados de cada partido ou coligação preenchem as vagas. Por isso, a cultura crescente de figuras como o Batman e o Robin de Aracaju.
Em 2010, o palhaço Tiririca (PR-SP) se elegeu deputado federal com número recorde. Foram 1,3 milhão de votos que colocaram o cantor do hit "Florentina" entre os escolhidos para representar a população.


* Texto publicado em 22 de setembro de 2012, no Portal Terra de Notícias. Matéria online aqui..

domingo, 16 de setembro de 2012

Aumento de ataques a bancos revela brecha no acesso a explosivos

A onda de ataques a bancos com explosivos em 2012 já é cerca 30% maior que o registrado em todo ano passado no Rio Grande do Sul. Até este mês, foram contabilizados pela Polícia Civil 18 arrombamentos. O crescimento, já sinalizado em outras partes do País, escancara a fragilidade na fiscalização e no controle deste arsenal.

De acordo com o delegado Juliano Brasil Ferreira, da 1ª Delegacia de Roubos do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic) do Rio Grande do Sul, as grandes quadrilhas que atuam nessa modalidade criminosa são formadas geralmente por cinco ou seis integrantes, que preferem os primeiros dias do mês e os finais de semana para agir. Os ataques geralmente são noturnos, quando não há funcionários, necessitando, dessa maneira, de uma ferramenta que torne o dinheiro acessível. Aí entram os explosivos.

Na cidade de Feliz, no interior gaúcho, a quantidade de explosivos utilizada pela quadrilha foi tão grande que o impacto destruiu toda a agência e abalou a estrutura da construção a ponto de ser necessária uma avaliação de engenheiros sobre os riscos de desabamento. Ferreira explica que nesse tipo de ataque, dificilmente os bandidos conseguem levar mais de R$ 20 mil. "Com a explosão eles acabam perdendo muito das notas. Um caixa eletrônico é abastecido com cerca de R$ 80 mil. Dessa maneira, por menos da metade da quantia contida no caixa, agências inteiras são destruídas."

Para ele, o fácil acesso dos bandidos a instruções de uso e aos próprios explosivos constitui um facilitador desse tipo de delito. "Infelizmente, o conhecimento sobre a utilização desse material está difundido entre os criminosos, sendo que um passa para outro, sem muita preocupação com a melhor técnica. Além disso, através da internet é possível conseguir até mesmo simulações", explica Ferreira.

Ainda segundo o delegado, esse material chega às quadrilhas por meio do desvio gota-a-gota feito em pedreiras e empresas que utilizam explosivos. "É difícil controlar os desvios porque alguns criminosos sabem que apenas uma banana de dinamite é capaz de explodir mais de um caixa eletrônico. Muitas vezes as pedreiras nem tomam conhecimento desse desvio por ser muito pequeno", explica.

O controle desses estabelecimentos é feito pelo Exército Brasileiro. A legalidade de utilização do material é restrita apenas a empresas que possuem autorização militar para produzir ou comercializar esse tipo de produto. "Infelizmente, acredito que por mais que o exército fiscalize, não conseguirá conter essa onda, pois não vejo qualquer relação quanto a isso", declara Ferreira.

O Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército (SFPC) explicou que as pedreiras geralmente possuem paiol próprio e, por conta disso, são alvo da elaboração de planos anuais de vistoria sobre a segurança na acomodação, recebimento e saída desse material. As visitas da fiscalização não são avisadas e, caso seja constatada alguma irregularidade, a empresa é autuada e os produtos em desacordo com as normas passíveis de apreensão. Embora esse controle seja feito, o órgão admite que furtos, roubos e desvios podem ocorrer e são difíceis de controlar.

Nesses casos a empresa comunica o Exército que busca apurar se houve negligência com relação às normas de segurança exigidas. Contudo, o regulamento militar prevê apenas sanções administrativas. A parte criminal fica ao encargo dos órgãos policiais, conforme informações do SFPC 3, situado no Rio Grande do Sul.

Outro possível acesso dos bandidos aos explosivos seria através do roubo dessas cargas durante o 
transporte para abastecimento das pedreiras e empresas. Desde o ano passado, o território gaúcho contabilizou quatro episódios desse tipo. Apenas um dos crimes terminou com a recuperação do material, em Garibaldi, na região serrana.

Apesar de Ferreira não acreditar neste método de obtenção como o principal, pela grande atenção que desperta, o SFPC explica que o transporte de carga explosiva ainda sofre com brechas na legislação que propiciam o crime. Segundo o órgão, é necessária uma guia de tráfego para o transporte, bem como seguir normas de segurança como rastreamento do veículo e outros aparatos. Entretanto, a legislação não exige, até o momento, a utilização de escolta para o deslocamento.

Em 14 de agosto deste ano, uma quadrilha explodiu, ao mesmo tempo, oito máquinas de auto-atendimento em Torres, no litoral gaúcho. A explosão destruiu toda a área dos caixas eletrônicos. A ousadia dos bandidos, segundo o delegado, segue tendências que mudam com o tempo. "Quando eles descobrem uma ferramenta nova, os ataques começam em uma parte do País e logo se espalham por tudo. Antigamente sequestravam os gerentes pra que abrissem o cofre, hoje em dia usam explosivos. Só mudam a forma da operação", destacou.

Na opinião do delegado, mais do que apenas fiscalização é necessário pra conter os ataques. O investimento em segurança por parte dos bancos, juntamente com uma maior repressão policial dificultaria a ação dos bandidos. "Acredito que tal modalidade criminosa terá fim quando os bancos adotarem dispositivos que invalidem as notas com a onda de calor, como, por exemplo, a guilhotina (corta as cédulas ao meio) e o entintamento", disse Ferreira, que nesta semana liderou uma operação que resultou na prisão de pelo menos 16 pessoas. O grupo é suspeitos de roubos a bancos e caixas eletrônicos com o uso de explosivos na região metropolitana de Porto Alegre. 





*Texto publicado no Portal Terra de Notícias em 15 de setembro de 2012. Matéria Online

sábado, 1 de setembro de 2012

RS: após anulação, concurso é suspenso por suspeita de fraude

Evidências de uma possível fraude em concurso público da Prefeitura de Porto Alegre (RS) para o cargo de agente fiscal da receita municipal, realizado em 29 de abril deste ano, levaram a Justiça a suspender o processo seletivo. Dessa maneira, os aprovados não poderão ser nomeados até o veredito final sobre o pedido de anulação. Essa foi a segunda vez que a mesma seleção acaba suspensa. A decisão, do juiz Angelo Furlanetto Ponzon do 1º Juizado Especial da Fazenda Pública do Rio Grande do Sul, foi publicada no dia 16 de agosto.

A denúncia é baseada na constatação de problemas em provas de redação que obtiveram nota máxima na avaliação escrita. Além da identificação de candidatos em algumas redações, erros de português, assinalados pelos corretores, não foram descontados nos testes. De acordo com o edital do concurso, qualquer tipo de identificação das provas escritas caracterizaria condições para anulação. Ainda no mesmo documento, consta que erros de grafia e gramática resultariam na perda de 0,5 pontos para cada incorreção.

Além dos problemas com as redações, uma questão da prova objetiva, com duas respostas válidas, gerou cerca de 30 recursos encaminhados à organização, todos negados pela banca examinadora. Cinco deles foram parar na Justiça através de mandados de segurança, e contam com liminares favoráveis à anulação. Na última sexta-feira, a prefeitura publicou no Diário Oficial do município o cancelamento do item.

A primeira anulação

Em 10 de abril deste ano, o mesmo concurso foi anulado, pela primeira vez, poucos dias após a aplicação das questões, em 25 de março e 1º de abril. A prova teria apresentado problemas em 17 das 160 questões. A invalidação da seleção correu "em razão da ocorrência de questões não inéditas, e pelo fato de um examinador ter ministrado aulas, no ano de 2010, em curso específico para o referido cargo", como consta no Edital 44 da prefeitura, documento oficial que anula o concurso. No mesmo ofício, foi marcada data para a aplicação da nova prova, em 29 de abril deste ano, nos mesmos padrões da anterior.

Entretanto, no dia 16 do mesmo mês, a Secretaria Municipal de Administração divulgou novo edital publicando os nomes dos integrantes da banca examinadora da nova avaliação. Dois dias depois, um terceiro documento modificou a comissão, trocando um dos integrantes. De acordo com um grupo de discussão dos candidatos na internet, a professora substituída também teria lecionado em cursos preparatórios para concursos.

A Prefeitura de Porto Alegre foi procurada para comentar o caso, porém, a assessoria de comunicação, e o setor responsável pelos concursos municipais disseram não ter conhecimento a respeito do assunto, até a última sexta-feira. A Fundação do Ministério Público (FMP), responsável pela realização do concurso público municipal, também foi procurada e informou que não havia pessoas autorizadas, na ocasião, a falar sobre o assunto.

A notificação oficial sobre o pedido de anulação do concurso foi encaminhada à Prefeitura, na tarde da última quinta-feira. O caso está sendo analisado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, sob responsabilidade da promotora Diomar Jacinta Rech, da Promotoria de Defesa do Patrimônio Público de Porto Alegre.


*Texto publicado em 25 de agosto de 2012, no Portal Terra de Notícias. Matéria Online

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

SP: 1º hospital público para animais do País tem grande procura

O vira-lata Lobinho, 9 anos, usa uma fralda enquanto espera, na calçada, atendimento no único hospital público para animais do País, localizado no Tatuapé, zona leste de São Paulo. Seu dono, o vigilante Clodoaldo Gonçalves, 39 anos, tem os braços cruzados enquanto espera, em pé, que seu bicho de estimação seja recebido. Ele afirma ter madrugado para tratar do cão que tem um tumor nos testículos, oculto por curativo colocado após a triagem. A fralda deixa escapar um pouco de sangue. "Tem três dias que ele está assim, e não come desde ontem", diz.

Com pouco menos de dois meses de funcionamento, a demanda por procedimentos médicos em animais cujos donos não têm condições de arcar com as despesas para o tratamento só tem aumentado. Inicialmente a equipe do Hospital Veterinário do Tatuapé contava com 28 funcionários, sendo 16 médicos veterinários. Contudo, para dar conta da forte procura, o hospital está atuando com um quadro de 25 profissionais da saúde animal e mais 25 funcionários de serviços gerais. Ainda assim, a espera média para o atendimento na instituição pode chegar a quatro horas.

No centro cirúrgico do hospital, outro cão de raça não identificada recebe massagem de veterinários após uma parada cardíaca. Não resistiu. A impotência diante de casos em que nada mais é possível fazer pelo bicho emociona. "Tenho 25 anos de formado, marmanjão, corintiano, às vezes saio num cantinho para chorar", desabafa Renato Tartália, 49 anos, médico veterinário e diretor administrativo do hospital.

A prefeitura paulista destina um repasse mensal de R$ 600 mil para a instituição, gerida pela Associação Nacional de Clínicos Veterinários de Pequenos Animais de São Paulo (Anclivepa-SP). De acordo com o autor do projeto, o vereador Roberto Trípoli (PV), como partida, a meta era realizar 100 atendimentos por dia, contando o retorno de pacientes em tratamento. No entanto, a procura pelos serviços cirúrgicos, ortopédicos, dermatológicos e odontológicos foi tão intensa que o vereador já menciona a necessidade de ampliar o atendimento. "Houve um dia em que, às 3h da manhã, já tinha gente na fila aguardando pra pegar a senha. O objetivo era fazer mil atendimentos por mês, mas, do jeito que está, teremos cerca de 3 mil, se continuar assim", explica.

Todos os dias, ao menos 40 novas fichas de atendimento são abertas para pessoas que procuram o hospital comprovando baixa renda, por meio da participação nos programas Bolsa Família e Renda Mínima. Uma assistente social atesta se o proprietário do animal se enquadra no público elegível para o tratamento gratuito. Os casos mais comuns são os atropelamentos: pelo menos cinco por dia.
O desempregado Luiz Carlos Oliveira, 28 anos, leva a gata Molenga há três semanas para receber soro. De acordo com ele, a felina de 15 anos tem insuficiência renal e artrite, entre outras dificuldades decorrentes de sua idade avançada. "Enquanto ela vive, sigo lutando por sua vida, não vou abandoná-la", diz. A faxineira Nair de Jesus Silva, 58 anos, faz carinho na cadela chow-chow Laila enquanto aguarda a remoção de útero do animal. Ambos só têm elogios para o centro de saúde animal.

Já existem projetos para ampliar o espaço destinado à instituição, além da criação de mais centros como esse em outras regiões da cidade. Tartália afirma que a inauguração do hospital, há cerca de 50 dias, foi uma conquista de grupos independentes que tratam dos direitos dos animais. O profissional acredita, ainda, que não há conflito em um atendimento público gratuito para os bichos, pois tratar do animal de estimação é tratar, também, seus donos. "Você percebe que, dando alívio ao sofrimento de um animal, você cura também o dono", finaliza.


* Texto em co-autoria de Hermano Freitas, publicado em 15 de agosto de 2012, no Portal Terra de Notícias - Matéria Online

Com poucas ações públicas, saúde animal ainda depende de voluntários

Pouco mais de um mês após sua inauguração, o Hospital Veterinário do Tatuapé, em São Paulo - primeiro centro de saúde pública do País especializado no atendimento de cães e gatos -, é um raro exemplo de iniciativa governamental em um setor que ainda depende, em grande parte, do trabalho de voluntários. São poucos os municípios brasileiros que contam com políticas públicas voltadas para os animais. Rio de Janeiro e Porto Alegre são, até o momento, as únicas capitais onde há secretarias para lidar com o assunto.

Em São Paulo, o Conselho Municipal de Proteção aos Animais é a principal representação de proteção aos bichos. As demais cidades do País contam apenas com os Centros de Controle de Zoonoses (CCZ), destinados à prevenção e à manutenção de doenças transmissíveis aos seres humanos, por meio do desenvolvimento de sistemas de vigilância sanitária e epidemiológica. Contudo, esses CCZs realizam apenas ações e programas estabelecidos pelos governos federal, estadual e municipal, sem agregar políticas específicas de proteção e bem-estar aos "pets".
Inaugurado no dia 2 de julho deste ano na zona leste de São Paulo, o primeiro hospital veterinário público do Brasil evidenciou, em pouco mais de um mês de existência, a demanda desse tipo de serviço. "Quem não tem recurso não tem a quem recorrer. O ser humano tem o SUS (Sistema Único de Saúde), o animal não tem nada. Hoje mudou a consciência a respeito do animal. As pessoas sozinhas os têm como companheiros. O retorno foi fabuloso e já tem candidatos à prefeitura de São Paulo sensíveis a essa questão", explica Roberto Trípoli (PV), idealizador do projeto.

O vereador paulista acredita que a repercussão da criação do hospital irá inspirar outros governos municipais a implementarem políticas públicas como a elaborada por ele. "Há, inclusive, a ideia de expandir o projeto e criar mais hospitais em outras regiões da cidade. São estimados cerca de 6 milhões de animais só em São Paulo. Não tenho dúvidas de que essa política irá refletir no resto do País. Já tenho contatos em Curitiba. Estou certo de que essa intenção vai se espalhar", afirma o parlamentar.

De acordo com Wilson Grassi Júnior, conselheiro da Associação Nacional de Clínicos Veterinários de Pequenos Animais de São Paulo (Anclivepa-SP), gestora do hospital, a necessidade da criação de políticas públicas como essa é justificável a partir de três vertentes. "A primeira diz respeito à eliminação do sofrimento dos animais que estão doentes e sem nenhum tratamento. A segunda, em contrapartida, visa à redução da angústia das pessoas, pois donos de animais enfermos que não têm condições de pagar por um tratamento acabam sofrendo por ver o bicho agonizar sem poder ajudá-lo", afirma. "A última é referente às questões de saúde pública. Animais doentes são fontes de transmissão de doenças", explica.
 
Secretarias municipais: ações de conscientização pela causa animal

A capital carioca foi a primeira a introduzir, em sua política municipal, uma secretaria especial para cuidar dos animais. Criada em 2000, a Secretaria Especial de Promoção e Defesa dos Animais (SEPDA), comandada atualmente por Luiz Gonzaga da Costa Leite, mantém atuantes iniciativas como o programa de esterilização gratuita Bicho Rio, o projeto para adoção Adotar é o Bicho!, o Centro de Proteção Animal e o Programa de Educação Ambiental.
Seguindo a mesma linha, a Secretaria Especial de Defesa dos Animais (Seda) de Porto Alegre, com pouco mais de um ano de existência, já conta com diversas ações protetivas. Apenas entre 3 e 9 de agosto deste ano, a Seda realizou 103 esterilizações, 117 vermifugações, 20 atendimentos clínicos e cinco cirurgias.

A mais recente iniciativa da Seda é o lançamento da Frente Parlamentar em Defesa dos Animais, em 16 de agosto. A ideia é mobilizar a sociedade quanto aos projetos voltados à causa que estão em tramitação no Parlamento gaúcho e na Câmara dos Deputados. O deputado estadual Paulo Odone (PPS), que coordenará a frente, é autor, ainda, de um projeto de lei que proíbe a utilização de cães como guardas, no Rio Grande do Sul.
 
Bancos de sangue e o voluntariado

No Brasil, as principais instituições de ensino superior contam com bancos de sangue animal nas faculdades de medicina veterinária. Diariamente, como em seres humanos, são necessárias bolsas de reposição sanguínea para viabilizar procedimentos médicos. Contudo, nem sempre o serviço pode ser feito de maneira gratuita, por falta de verba destinada para esse fim. "Há um custo, pois o governo não tem políticas que garantam que esse serviço seja feito gratuitamente", explica a veterinária responsável pela criação do banco de sangue animal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luciana Lacerda.

Luciana implementou o banco na Faculdade de Medicina Veterinária da UFRGS há sete anos, pela necessidade de um local que analisasse a fundo esse tipo de substância. Contudo, o banco foi fechado recentemente pela falta de um profissional disposto a dar continuidade ao projeto, tendo em vista a saída da veterinária. "Muito do investimento financeiro foi feito por mim mesma", ressalta.
 
Redes sociais

Engajada na causa como Luciana, há pouco menos de um ano, Bruna Mendes criou o projeto Open Bar Canino. Por meio das redes sociais, a jovem de 19 anos busca dar maior qualidade de assistência às principais ONGs animais de Porto Alegre. Por meio da arrecadação de ração, cobertores e roupinhas, ela dá condições às entidades destinarem forças para serviços mais complexos, como atendimento médico veterinário, cuidados básicos de saúde e medicamentos.
A estudante e a veterinária fazem parte de uma rede informal de voluntários que procura suprir a necessidade de políticas públicas de proteção e bem-estar dos animais na capital gaúcha. Esse tipo de atividade faz parte da rotina de milhares de pessoas, em todo o País, que acreditam nos animais como seres merecedores de melhores condições de vida e de assistência governamental.
A Constituição Federal, em seu artigo 225, impõe à sociedade e ao Estado o dever de respeitar a vida, a liberdade corporal e a integridade física desses seres, além de proibir práticas que os coloquem em risco ou provoquem a sua extinção. "Os animais de estimação são os únicos seres que dão todo o amor que têm e não pedem nada em troca, além de transmitir uma felicidade incrível. É impossível alguém entrar em um local que tem um cão abanando o rabo e não ficar feliz", afirma Bruna.


 *Texpo publicado no Portal Terra, em 15 de agosto de 2012 - Matéria com fotos

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Quando educar é a única solução

Na última terça-feira, uma briga entre dois estudantes da Escola Ivo Bühler (Ciep) chamou a atenção para a gravidade da violência escolar em Montenegro. Um aluno de 13 anos apertou o pescoço do colega de 12 até o jovem desmaiar. O agressor só cessou o estrangulamento através da intervenção de uma monitora da escola. Mesmo assim, o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) precisou ser acionado para remover o estudante agredido para o Hospital de Montenegro (HM).
Muitos pais podem pensar que se trata de um caso isolado, porém, a realidade aponta para um aumento considerável nos casos de comportamento agressivo nas escolas. Coincidência ou não, na sexta-feira da semana anterior, um incêndio atingiu um depósito da Escola Estadual Delfina Dias Ferraz. No texto publicado pelo Jornal Ibiá consta que, apesar de a direção não ter feito acusações quanto à autoria, no momento do fato houve suspeitas de que se tratasse de um sinistro proposital.
No entanto, esses são apenas exemplos de episódios noticiados pela mídia. Diariamente, os professores presenciam atitudes dos jovens que abrem a discussão sobre as causas e as consequências da violência escolar.
Durante dois dias, o Colégio Estadual Paulo Ribeiro Campos recebeu o Comitê Comunitário de Prevenção à Violência nas Escolas (Copreve) para a realização do curso de formação de mediadores de conflitos no ambiente escolar. A iniciativa é da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) e tem como proposta diagnosticar as principais formas de violência e conflitos nas instituições de ensino de diversas cidades do Rio Grande do Sul e preparar a docência para combatê-la. Representantes de todo os educandários estaduais do município estiveram presentes, assim como a Guarda Civil e o Conselho Tutelar. Dentro das 38 cidades abrangidas pela 2ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), Montenegro, Taquara, São Leopoldo e Novo Hamburgo foram as escolhidas para capacitar os professores como mediadores de conflitos no ambiente escolar. De acordo com a responsável pela temática de mediação à violência da 2ª CRE, Noemi Antonio Maria, a seleção das cidades foi feita através de um levantamento prévio de onde havia maior incidência de situações de conflito.

Primeiro dia apontou principais problemas
Num primeiro momento, os cerca de 20 participantes do curso de formação se dividiram em três grupos. Cada equipe foi incumbida de listar os dez principais tipos de violência escolar mais incidentes, além de mencionar os fatores geradores de cada um e os métodos utilizados para lidar com as situações descritas dentro da sala de aula, no ambiente escolar e no entorno das instituições, respectivamente.
Após debaterem entre si, cada grupo apresentou suas constatações e exemplificou com fatos recorrentes nas escolas onde atuam. Dentre os tópicos listados, os docentes mencionaram vandalismo, mau uso de mídias sociais, brincadeiras violentas, assédio sexual, agressão verbal, desrespeito aos funcionários e bullying como algumas das situações frequentes nas escolas estaduais de Montenegro. As causas são atribuídas a diversos fatores, entre eles, à banalização das relações, sensação de impunidade, despreparo do professor, ausência de valores, baixa autoestima do aluno e drogas.
Contudo, os métodos utilizados para solucionar os problemas não parecem ter acompanhado o crescimento e a gravidade que a violência escolar atingiu na atualidade, além de não terem mais a mesma eficácia que tinham antigamente.

Falta preparação aos docentes
 Um dos temas levantados pelos professores foi a questão das universidades não formarem mestres preparados para enfrentar a realidade que se faz presente nas escolas. Uma das participantes comparou a formação pedagógica obtida no antigo magistério (hoje chamado Curso Normal) com as atuais licenciaturas. “É visível a falta de técnicas dos novos que, muitas vezes, não têm conhecimento nenhum a respeito da realidade que seus alunos vivem”, destacou.
Nesse contexto, ela lembrou de um caso onde um aluno foi espancado na rua porque se negou a vender drogas dentro da escola. “Tem situações em que eles têm mesmo que esconder de todos porque não sabem qual será a reação dos colegas, nem da instituição. E se isso viesse à tona na escola? Até que ponto a repercussão não prejudicaria esse aluno ao invés de ajudar”, questionou. De fato, uma situação incide sobre a outra, gerando a necessidade de preparo do professor diante dos diferentes contextos que podem aparecer.

 Governo investe em ações de prevenção
O assessor técnico do gabinete do Seduc e coordenador do programa de mediação de conflitos escolares no Estado, Júlio Alejandro Quezada Jelvez, explica que, desde o ano passado, a Secretaria de Educação desenvolve o programa de prevenção à violência nas escolas com várias temáticas, entre elas, a mediação de conflitos. “Para o ano que vem, queremos trazer o curso para alunos também, com a proposta de preparar estudantes para serem mediadores de situações de tensão”, explica. A ideia é prevenir a violência nas escolas em geral, visto que, além de todos os problemas mencionados, não são raros os casos de agressões a professores.
E, de fato, é a medida mais eficaz existente, apesar de ter efeito apenas a longo prazo. Em matéria publicada em março pelo Jornal Ibiá, os projetos de lei que visam proteger a docência da violência escolar foram listados. Todos eles encontram-se parados ou em tramitação. Alguns, há mais de um ano, deixando os professores em verdadeira situação de desamparo.
De acordo com uma das participantes, cursos como o de mediação de conflitos são uma necessidade para quem leciona hoje em dia. “Estamos vivendo outros tempos, e não são bons. Temos que aprender a lidar com essas coisas. Tem semanas em que a escola parece uma delegacia de tantas ocorrências que aparecem”, desabafa. “A escola deve ser de qualidade para que não precisemos de presídios de segurança máxima”, completou o representante da Guarda Civil.


*Matéria publicada no Jornal Ibiá (Montenegro -RS) de 29 de junho de 2012. Matéria com fotos aqui.

A vida só vale o que se faz de bom

Toda vez que recebo uma pauta sobre a história de vida de uma pessoa, procuro me preparar. Não sei bem o motivo dessa mania, afinal, nunca sei o que vou ver. Acho que o legal de ser jornalista é isso. Nunca saber o que vem pela frente. Com o Seu Mariano não foi diferente. Eu só sabia que deveria visitar um senhor que escrevia poemas. Jamais poderia imaginar que me depararia com uma pessoa capaz de dar uma lição de vida em um encontro de pouco mais de uma hora. A história do poeta de 71 anos comove. Comove pelo amor à escrita e à literatura. Pela forma como conseguiu manter-se escrevendo durante quase toda a vida sem perspectiva de reconhecimento.

Um fato contado por ele que me marcou muito foi a história de quando foi colunista de um jornal. Seu Mariano lembrou que uma vez foi pedido para escrever sobre uma temática que considerou ruim. Algo como violência ou coisa do gênero. Ele conta que se negou a fazer por não ter interesse em disseminar mensagens que não fossem boas. Um pouco antes ele mencionou um episódio em que, quando jovem, escrevera uma décima sobre uma enchente que atingiu Candelária e fora reprimido pelos irmãos. “Coisa negativa não se passa pros outros”, disseram na ocasião. Uma filosofia que levou por toda a vida.

Pedi alguns poemas pra colocar na matéria e recebi a negativa acompanhada da explicação de que os grandes jornais não têm interesse em publicar esse tipo de coisa. Que o que gera leitores é a tragédia, o assalto, a morte. Naquele momento, pensei no quanto eu gosto de literatura e no quanto apreciaria ver um texto legal com uma história bacana como a de Seu Mariano. Pensei nisso como leitora mesmo e não como jornalista. Falei pra ele que os jornais têm o objetivo de informar - seja a notícia boa ou ruim – e que, mais do que isso, os veículos de comunicação são uma forma de mostrar que não somos os únicos, que nossas rotinas são parecidas e que muito do que é importante pra nós, também é importante pra muitos. Mais do que a informação, as pessoas buscam identificação com tudo o que é noticiado. Além disso, mostrar histórias como a dele são uma forma de fugir das "matérias que dão audiência", para dar espaço às que dão certeza de que é possível ser feliz.   


* Texto publicado na seção "Blog da Redação", no site do Jornal Ibiá (Montenegro-RS) em 26/06/2012, referente ao texto O Poeta do Faxinal.

O Poeta do Faxinal

Uma pequena sala repleta de papel e coleções. Mais papel do que qualquer outro material. Entre os clássicos da literatura, pilhas de folhas classificadas por nomes de cidades. Municípios pelos quais passou. Locais que viu, viveu e o inspiraram. Nas prateleiras, de um lado, inúmeros porta-lápis. De outro, os chaveiros que também coleciona. Ali, naquela sala, a vida de seu Mariano está registrada em poemas e canções. Cerca de 6 mil. Todos escritos por ele ao longo dos 71 anos que carrega nas costas.
Em cima da escrivaninha, a inseparável máquina de escrever. E dentro do bolso, o bloquinho e a caneta que carrega consigo desde que começou a colocar no papel o que vê e o que sente, aos 17 anos. Ites Alves Mariano é morador do bairro Faxinal, em Montenegro. É funcionário público aposentado, pai de seis filhos, vô de oito netos e poeta. “Por onde eu ando, escrevo o que vejo. Qualquer coisa pode se tornar inspiração”, explica. Vindo de uma família de dez filhos, do interior de Candelária, ele conta que começou a tocar violão por influência dos irmãos, que se inspiravam na música sertaneja da época, como Tonico e Tinoco. “A gente cantava sobre a natureza. Sou muito ligado a ela”, diz. Deixou a terra natal para estudar, passou no concurso público que lhe garantiu a função de oficial escrevente, e escreveu. Ao todo, são 26 livros, com poemas em prosa e verso, e mais as canções. “Tudo é uma opção de vida. Eu queria estudar”, conta.
Sentado no sofá de sua casa, Mariano tem o olhar fixo e explica que falar sobre sua vida é como reviver um pouco de todo aquele passado. Entre um episódio e outro, os versos vem naturalmente, como que num passe de mágica, e se tornam parte da história do poeta do Faxinal: “Para mim, as estrelas do céu são as flores do chão. Quantos são os que pisam em nós?”, reflete.

Quando a inspiração faz parte da vida, nas coisas boas e ruins
Em 1961, uma enchente castigou Candelária de tal forma que a chuva chegou a levar algumas casas pra dentro do rio local. Seu Mariano conta que a tragédia chamou tanto sua atenção que o inspirou. “Escrevi uma décima. Meus irmãos me mandaram rasgar. Diziam que coisa negativa não se passa pros outros”, lembra. Ainda assim, continuou a registrar o que via com seu olhar refinado. Nem mesmo um velório passou despercebido. “Me xingaram dizendo que não era lugar para fazer aquilo. Fui para o banheiro e terminei o poema lá”, conta. Pouco tempo depois, a família do tal falecido recebeu os versos e mandou publicar no jornal, como homenagem ao ente querido perdido. Um momento de trabalho reconhecido.
Quando saiu de Candelária e foi para Santa Cruz do Sul estudar, levou consigo um violão, que, mais tarde, trocou por uma bicicleta velha. “Acho que foi aí que comecei a escrever de vez. Eu lembrava das minhas origens e escrevia algumas poesias”, emociona-se.

“A vida só vale o que se faz de bom”
Quando tinha em torno de 15 anos, em Santa Cruz do Sul, seu Mariano trabalhava nas fábricas de dia e estudava de noite. Alguns anos mais tarde, alcançou sua meta de se tornar funcionário público e mudou-se para Porto Alegre. Em 1980, veio transferido para Montenegro, onde chegou a escrever para alguns jornais locais, como colunista. Em seu acervo, canções sobre o município fazem parte dos textos que constituem sua obra. “Me considero montenegrino por adoção”, afirma. Passou por Capão da Canoa, voltou à Santa Cruz, escreveu para mais alguns jornais, se aposentou e voltou para cá há cerca de cinco anos, onde se sente acolhido - coincidência ou não, na Cidade das Artes.
Alguns episódios tristes marcam sua trajetória como escritor, mas nada que o faça perder a inspiração. “Eu cuido dos passarinhos, toco meu violão, leio e escrevo para passar o tempo”, comenta. Seu Mariano se considera feliz. Diz que acha que a vida não lhe reserva muito mais, mas que tudo o que planejou pra ele foi alcançado. Na sua salinha repleta de lembranças e histórias, ele se realiza a cada poema e segue escrevendo. “A vida só vale o que se faz de bom”, termina.


*Matéria publicada no Jornal Ibiá (Montenegro -RS) de 26 de junho de 2012. Matéria com foto aqui.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Caos é sinônimo de ERS 240

“Olha onde tá o dinheiro do meu imposto!”, brada um motorista de caminhão para os funcionários da empresa Giovanella, ao passar pelo atoleiro no desvio da obra da ERS 240, no sentido Montenegro-Portão. O que ele não sabe ao fazer a afirmação é que grande parte dos transtornos causados no trecho são oriundos dos próprios veículos pesados que não respeitam as orientações sobre o peso suportado pela estrada. “Se em cada trevo de desvio for colocado um funcionário da empresa, ninguém vai trabalhar na obra. Daí os caminhões não respeitam as placas e estragam a rua”, indignou-se um dos trabalhadores da construtora Giovanella, em um dos pontos críticos do desvio, na tarde de ontem. 
O Jornal Ibiá acompanha a sina dos motoristas que precisam utilizar a estrada de chão batido para ir ou vir de Portão, e tem constatado uma série de problemas. 
O aposentado Schirlei Dutra de Oliveira, 62 anos, que mora à beira do desvio, afirma que os responsáveis pela obra se prepararam mal. “Desde o começo, quando disseram que iriam usar essa estrada como desvio, eu já sabia que ia dar problema”, lamenta. De fato, as inúmeras reclamações a respeito do trânsito, da sinalização no local e a quantidade de caminhões atolados desde o início da obra abrem o precedente para que hipóteses como essas se tornem verossímeis. 
Na edição de terça-feira do Jornal Ibiá, um mapa fornecido pelo engenheiro responsável pela obra, César Zeni, do Departamento Autônomo de estradas de Rodagem (Daer), orientou os condutores sobre os caminhos a seguir no trecho, de acordo com o peso dos veículos. Entretanto, a sinalização precária não permite que as recomendações sejam seguidas corretamente. O desvio para veículos leves para quem vai de Montenegro até Portão fica no quilômetro 30 da rodovia, à direita, logo depois da Tenda do Segredo.
Contudo, não há placas claras mostrando que ali a rota alternativa só serve para automóvel. Quem passa desatento cai automaticamente na entrada da estrada sugerida para caminhões, chamada Barra do Cadeia, e trecho de acesso à ERS 240 de quem vem de Portão para Montenegro.
Com a confusão, a estreita via, de aproximadamente 5 quilômetros de estrada de chão, acaba recebendo fluxo de carros de ambos os sentidos e, ainda, os caminhões e carretas que não deveriam trafegar por ali. 

Transtornos são resultado de mau uso


Na tarde de ontem, a equipe do Jornal Ibiá presenciou o caos que se instalou a partir de um caminhão que atolou no trecho para veículos leves, na estrada da Divisa. Uma imensa fila de carros se formou enquanto os funcionários da Construtora Giovanella, contratada pelo Daer para reconstruir o bueiro na 240, se desdobravam para transportar material que pudesse dar condições à estrada de chão danificada pela chuva e pelo uso dos veículos pesados.
Enquanto isso, motoristas indignados com a precariedade da rota e a demora para conseguirem passar reclamavam da situação. “Achei uma falta de organização essa obra. Quem a contrata tem que dar estrutura para que ela possa ocorrer. Estamos em 2012 e ainda vemos esse tipo de situação”, afirmou Dirceu Roque Sponchiado, que pretendia chegar a Taquaruçu do Sul.
Outros motoristas comentavam que não havia placas que informassem que veículos de mais de 8 toneladas não poderiam trafegar por aquele desvio, no sentido Portão-Montenegro. Todos eles esperaram cerca de 30 minutos para seguir viagem.
Morador do local, o agricultor Harry Gröss, 40 anos, olhava com o cenho franzido os homens tentando assentar o barro no trecho onde ocorreu o atolamento. “Tá horrível isso aqui. É uma vergonha! Esse desvio devia ter sido preparado antes. Deviam ter alargado essa estrada antes”, reclamou. Ele chegou a fazer contato com a Polícia Rodoviária que o orientou a entrar em contato com a empreiteira.

A quem cabe a responsabilidade?

A grande dúvida que paira sobre os usuários do trecho em questão é a respeito da responsabilidade pelas condições das rotas alternativas.
O superintendente regional do Daer, engenheiro Jorge Fernandes, informou que, antes do início da obra, foi solicitado à Construtora Giovanella que o desvio recebesse melhorias para suportar o fluxo de veículos. Uma revigoração do desvio teria sido feita pela empresa, todavia, a utilização do trecho por veículos pesados teria prejudicado o trabalho. Jorge ainda informou que, por conta dos transtornos que vêm ocorrendo, novas melhorias foram solicitadas para amenizar o caos. 
A Giovanella afirmou que o Daer é quem dá as orientações, e a ela cabe apenas executar as medidas. Contudo, tanto o Daer quanto a Giovanella reforçam o pedido de colaboração dos motoristas. Caminhões da construtora estão, constantemente, deslocando material para os desvios, com a finalidade de assentar o barro e os buracos provocados pelas chuvas de ontem e pelos motoristas de caminhões que não obedecem as placas. Para hoje estão previstas novas intervenções nos trechos alternativos para melhorar a estrada.
Diante da confusão, o Daer informou que irá analisar a situação e tomar medidas.


*Texto parte da cobertura da obra da "cratera", no km 24 da ERS 240. Foi publicada em 31 de maio de 2012, no Jornal Ibiá (Montenegro-RS). Matéria com fotos aqui.


Quando o trabalho dá lição de vida

Uma tarde quente e muito nervosismo. Assim eu descreveria o dia em que fui fazer a entrevista com os haitianos que vieram, recentemente, pra Montenegro. Normalmente eu já fico ansiosa para entrevistas importantes, porém, aquela seria minha primeira em francês, língua que estudei durante anos, mas estava há muito sem praticar.

O primeiro contato com os novos imigrantes foi mais fácil do que eu imaginava e o idioma fluiu melhor do que eu poderia esperar. O Ezechiel, que cursou dois anos de faculdade, se mostrou super solícito e comunicativo - apesar de não querer aparecer nas fotos - e me ajudou muito a compreender o que os outros falavam em Crioulo - dialeto haitiano que constitui língua oficial junto com o francês.

Em quase 2 horas de entrevista, ele me mostrou a casa onde estão vivendo e falou sobre seus sonhos. Foi emocionante o momento em que, conversando sobre a vontade que ele tem de continuar seus estudos, eu mencionei que aqui no Brasil existiam universidades gratuitas e que, talvez, fosse possível tentar seu ingresso em alguma delas. A alegria no olhar foi explícita.

O Jean Chal foi outro que comoveu. A primeira coisa que me perguntou, quando me apresentei como sendo do Jornal, era como ele deveria fazer pra trazer a esposa e os três filhos que deixara no Haiti. Fiquei sem palavras, querendo dizer algo que alentasse, mas, infelizmente, não tinha nenhuma informação que pudesse ajudar.

Depois de conversar com eles, tive um longo diálogo com o Charles, coordenador de produção da Agrogen, que foi ao Acre fazer a oferta de emprego. Ali eu percebi que a situação dos haitianos não emocionava só a mim. Ele me contou toda a história e se emocionou ao lembrar de alguns fatos. Por fim, ele afirmou, que se a empresa pedisse que fosse novamente ao Acre, iria simplesmente pela oportunidade de ter contato com uma realidade tão difícil e poder fazer algo pra mudar.

Saí de lá pensando muito naquilo tudo. Na vida daquelas pessoas, em tudo que eu tinha e como eu deveria agradecer pela vida privilegiada que levo. Fiquei com vontade de voltar mais vezes, e, de fato, o farei. Talvez eu não possa ajudar o Jean Chal a trazer a família, nem o Ezechiel a voltar a estudar, mas posso tentar fazer com que essa batalha dura que eles terão pela frente, seja menos sofrida com a amizade e apoio que me senti disposta a oferecer. Bon courage, mes nouveaux amis! (Boa sorte meus novos amigos!)

* Texto publicado na seção "Blog da Redação", no site do Jornal Ibiá (Montenegro-RS), com os bastidores da entrevista com os haitianos.

 

Superação como condição para sobreviver

“Estamos aqui para ajudar nossas famílias que ficaram lá! Essa é a nossa responsabilidade”, afirma Ezechiel Charles, um dos 24 haitianos que foram trazidos para Montenegro, para trabalhar na empresa Agrogen. Ainda em processo de adaptação com a língua e, principalmente, com o frio, os novos “gaúchos” trazem no olhar as marcas do caminho trilhado até o Brasil, e no sorriso a esperança de dias melhores.
Ivia Olivier, Mariciledesir, Aldajuste Nasson e Jean Wener Chal, junto com Ezechiel, acreditaram nas promessas de sucesso, dinheiro e prosperidade que circulavam em seu país a respeito do Brasil. Nenhum deles se conhecia, porém, todos compartilhavam o sonho de ajudar a família a sobreviver com os ilusórios salários de cerca de R$ 3 mil supostamente pagos por aqui. Vieram de forma independente, sem contrato ou vinculação com qualquer empresa, sem lugar para ficar ou contato de conhecido brasileiro que pudesse auxiliar. Um pouco de dinheiro para pagar as passagens e muita vontade de mudar de vida era tudo o que traziam na bagagem. 

Saíram do Haiti em janeiro deste ano sem data para retornar. Fizeram, de avião, uma rota bastante conhecida entre os haitianos. Passaram pela República Dominicana, Panamá e Peru, onde entraram em terras brasileiras através do Acre. “Nosso país é muito pobre. Já era antes do terremoto, mas ainda conseguíamos levar a vida. Depois da catástrofe, nos vimos obrigados a deixar o Haiti para buscar melhores condições. Era a única esperança”, explica Ezechiel.
No trajeto até a fronteira do Peru com o Brasil, tudo ocorria bem até perceberem que o suborno de peruanos, para atravessar o limite entre os dois países, era rotina. “O governo peruano não deixou eles entrarem aqui. Vieram de forma ilegal, com os coiotes. Eles contam que pagaram 100 dólares para poderem atravessar a fronteira”, comenta Charles Eduardo Stefanello, coordenador de produção da Agrogen, que foi buscá-los no Acre. O impasse para sair do Peru e chegar à Brasiléia, cidade brasileira na fronteira com o estado nortista, custou todo o dinheiro que traziam consigo e três meses dormindo na rua e trabalhando exclusivamente por comida até a situação se resolver.

Pelo mundo em busca de um sonho maior
Ezechiel tem apenas 25 anos. Cursou até o segundo ano da faculdade de Ciência da Computação, no Haiti. Ele conta que, antes do terremoto que devastou seu país, em janeiro de 2010, a vida era difícil. Entretanto, após a catástrofe, a situação se tornou insustentável.
“Depois do tremor, tivemos medo que houvesse outro e fomos obrigados a sair do país e buscar outra alternativa”, lembra. Emocionado, ele afirma que perdeu pessoas queridas no desastre e que a pobreza, o desemprego e a violência atingiram níveis assustadores e sem perspectivas de solução.
O jovem é um dos únicos imigrantes que possui um grau de instrução mais elevado. É tido como um dos líderes por ter conhecimento de outras línguas, entre elas a espanhola e o inglês, o que o torna um facilitador da comunicação entre os funcionários brasileiros e os haitianos, na Agrogen. 
Curioso, ele faz perguntas sobre o Brasil, questiona como é viver em São Paulo e se mostra esperançoso com a vida que se projeta daqui para frente. “O motivo principal de estar aqui é juntar dinheiro para conseguir continuar meus estudos e ajudar a minha família”, afirma. Concluir a faculdade deixou de ser algo possível para se tornar um sonho distante.
Os outros, em sua maioria, eram comerciantes em suas respectivas cidades e, como Ezechiel, perderam junto com parentes e bens materiais a perspectiva de felicidade pela qual vinham batalhando até perderem tudo com o terremoto. O que restou, além dos escombros, foram esperança e força. Muita força.

Ações em nome de um futuro
Jean Chal tem 40 anos. Tem, também, nos olhos, marcas de saudade. “Tenho esposa e três filhos. Como faço para trazê-los para cá?”, questiona, auspicioso.  Charles comenta que os trouxe a Montenegro para adquirirem um celular cada um. Jean gastou todos os créditos que colocou, no dia da compra, para falar com a família.
Marcos Antonio Matte, líder de produção da Agrogen, também conta que frequentemente é solicitado para ajudar a realizar ligações para o Haiti. “Esses dias, um deles vibrava ao conseguir completar a ligação. Acenava para mim com os polegares, sorrindo, por ter conseguido”, lembra.
O coordenador de produção também menciona outra moça do grupo, que quase desistiu do emprego na granja por achar que não conseguiria trabalhar na função para qual foi designada. “Ela disse que nunca tinha trabalhado na vida. Provavelmente a família tinha um poder aquisitivo maior para ela nunca ter precisado batalhar por dinheiro”, especula Charles.
De fato, a história diferente que cada um conta é uma amostra da realidade difícil que paira sobre o pequeno país, e o quanto de suas vidas está sendo sacrificada nessa tentativa de recomeçar. Quando foram propostos para o emprego no Rio Grande do Sul, havia 250 haitianos no alojamento, em Rio Branco, no Acre. Os 24 que se interessaram em vir para o Estado tiveram seus documentos regularizados na imigração, ganharam visto e carteira de trabalho. Agora são como qualquer outro cidadão, com direitos e deveres, porém, alguns medos e receios a mais. “Tem racismo no Brasil? Se algum dia eu for vítima de preconceito aqui, volto pro Haiti”, afirma Ezechiel. “Os brasileiros são sensíveis, compreensivos, nos ajudam e são alegres como nós”, termina.

Recrutamento foi até o Acre
A dificuldade de contratar mão de obra para algumas unidades produtivas aqui no Estado, e também em Minas Gerais, fez a Agrogen buscar uma alternativa inusitada. Foi assim que surgiu a ideia de dar uma oportunidade de trabalho para haitianos. A seleção foi realizada em abril, em Rio Branco (Acre)e, desde o final do mês passado, eles se encontram em solo gaúcho, em três unidades da empresa.
A coordenadora de Recursos Humanos da Agrogen, Vanessa Lermen, conta que leu uma reportagem sobre a migração de haitianos para o Brasil em busca de emprego e uma nova vida, já que seu país fora devastado por dois terremotos em 2010. Daí surgiu a ideia de buscar a contratação dessas pessoas. “Eu estava no Paraná e conversando com uma consultora sobre a dificuldade de contratar mão de obra. Então ela comentou que havia escutado boas referências sobre a mão de obra dos haitianos. Pensamos que seria uma ideia boa aliarmos a oportunidade de ajudarmos essas pessoas e resolver o nosso problema com a escassez de trabalhadores, que atinge o setor avícola”, explica.
A partir daí, foi feito contato com o governo do Acre, que serve de porta de entrada para os haitianos no país. “Fomos atendidos pelo secretário municipal de Brasiléia, cidade que se especializou em acolher os haitianos que nos informou que os mesmos estariam entrando no país por Rio Branco, sua capital. Na medida que o governo federal fosse autorizando a entrada deles, que estavam na fronteira do Brasil com o Peru, fariam contato para que fossemos recrutá-los”, conta Vanessa.
A liberação da entrada dos haitianos no Brasil foi feita apenas no dia 17 de abril, para 240 pessoas. Assim, no dia 18 de abril, o coordenador de produção da Agrogen, Charles Stefanello, e Juliana Coser, do setor de Recursos Humanos da empresa, foram até Rio Branco, para selecionar e recrutar os haitianos. Dos 32 contratados, dez foram para as unidades de Montenegro, dez para São Francisco de Paula, quatro para Triunfo e oito para Sete lagoas (MG).

Sobre o Haiti
- O Haiti é o país mais pobre das Américas. Ao mesmo tempo, foi a primeira república negra do mundo a declarar sua independência.
- Cerca de 80% da população vive em situação de extrema pobreza com menos de dois dólares por dia e situa-se em uma área no globo que é bastante propícia a ser atingida por furações e terremotos.
- Uma das línguas oficiais do país é o Francês, porém, apenas 10% da população a utiliza. A maioria fala o Crioulo, língua oficial junto com o idioma da minoria.
- Desde junho de 2004, Argentina, Benim, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Croácia, Equador, Espanha, França, Guatemala, Jordânia, Marrocos, Nepal, Paraguai, Peru, Filipinas, Sri Lanka, Estados Unidos e Uruguai compõem as tropas que integram a Missão de Paz no Haiti. É uma iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) para reconstruir e estabilizar a República. 
- Em janeiro de 2010, um tremor de terra de 7 graus na escala Richter devastou o país e agravou a situação dos mais de 10 milhões de haitianos. No desastre, pelo menos 200 mil pessoas morreram, 800 mil ficaram feridas, 4 mil foram amputadas e quase 2 milhões desabrigadas. E esse número de óbitos só contabiliza os sepultados oficialmente. Os que nunca foram retirados dos escombros nem os que foram enterrados pelas famílias estão incluídos. Se contados, o número estimado chega a quase 700 mil mortos. Foi a terceira maior catástrofe do mundo.

CNIg aprovou concessão de vistos
 
Segundo a coordenadora de Recursos Humanos da Agrogen, Vanessa Lermen, a idade dos haitianos trazidos pela empresa para o Estado e para a cidade de Sete Lagoas, em Minas Gerais, varia de 22 a 52 anos, sendo 26 homens e seis mulheres.
Vanessa conta que a contratação foi realizada no regime de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), “com todos os benefícios legais e, em alguns casos, com acompanhamento psicológico. Por causa de algumas denúncias de promessas não cumpridas por parte de algumas empresas, o Ministério do Trabalho monitora todas as empresas contratantes”, explica.
O processo de espera por uma oportunidade de trabalho não é dos melhores. De acordo com Vanessa, em Rio Branco, os haitianos recém-chegados recebem assistência médica, alimentação e hospedagem em uma pousada onde cabem até 80 pessoas precariamente. “Lá, eles fazem exame para detectar Aids, Cólera e outras doenças, além de tomar vacinas contra Hepatite, Tétano e Febre Amarela”, conta.
Segundo ela ainda, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), órgão ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego (TEM), aprovou  a concessão de 1.200 vistos por ano para haitianos que pretendem migrar para o Brasil. O documento, válido por cinco anos, dá direito de o estrangeiro trabalhar e trazer a família para o país pelo mesmo período.

*Matéria publicada no Jornal Ibiá (Montenegro -RS) de 10 de maio de 2012, em co-autoria com Pedro Giumelli, no qual participei fazendo a entrevista com os haitianos. Matéria com fotos aqui


quinta-feira, 12 de abril de 2012

A incrível arte de ser mulher

“Elas vinham num panelão grande, com água quente – pra tirar a banha que tinha dentro – daí a gente deixava esfriar e no outro dia ia botando em cima de uma mesa grande. E o chefe ficava ali do lado. Às vezes, ele até nos ajudava a rotular as latas”, conta, com voz rouca, Lídia Lúcia Schu, de 96 anos. A moradora de Montenegro, natural dos arredores de Taquari, junto com mais cinco outras moças, fez parte do grupo das primeiras mulheres a serem empregadas em uma fábrica de conservas da cidade, por volta de 1935. “Não havia moças trabalhando. Então, meu cunhado, que trabalhava lá, ficou encarregado de encontrar seis moças – de família – pra ajudar com as latas de conserva”.

Dona Lídia presenciou uma parte importante da história da participação da mulher na sociedade. Viu as saias diminuírem de comprimento, os sapatos ganharem saltos altíssimos, os pais deixarem as filhas irem sozinhas aos bailes e as parteiras darem espaço às clínicas obstétricas.
A vida da única remanescente dos oito filhos do casal de agricultores, mãe de três filhos, avó de três netos e quatro bisnetos remonta a trajetória de lutas das mulheres em busca de igualdade de direitos perante a sociedade. É, também, um registro da evolução do papel da mulher na história de Montenegro.

Para tanto, as mudanças na realidade feminina demoraram para começar a engrenar. A Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, abriu as portas das fábricas para operárias mulheres que, mesmo com salários até 60% menores que o dos homens, ganharam o direito de trabalhar fora de casa. Com isso, o preconceito e a discriminação masculina chegaram a níveis assustadores. Em uma fábrica de Nova Iorque, 129 tecelãs se mobilizaram em uma greve em prol de melhores condições de trabalho e redução da carga horária de 12 horas diárias. Como reprimenda e forma de coibir esse tipo de protesto, a polícia e os patrões trancaram as funcionárias dentro da fábrica e atearam fogo. Todas elas morreram carbonizadas. Esse dia era 8 de março de 1857.

Uma luta que começou sem prazo para terminar

Dona Lídia nasceu no 12° dia do mês dezembro, no ano de 1915. Veio para Montenegro com 17 anos. Até então, a realidade feminina se resumia em maternidade e cuidados com o lar. Fazer um bom casamento era sinal de encaminhar a vida, e sair desacompanhada dos pais ou do marido era mal visto e inviável diante da condição social imposta à mulher. “Antes de vir morar em Montenegro, eu ficava ansiosa esperando pelos bailes. As moças iam de carreta e os pais tinham que ir junto. A gente ia com uma roupa e lá pela meia noite trocávamos para uma vestimenta de festa”, conta.

Antes mesmo de Dona Lídia ir ao seu primeiro baile, uma revolução feminina já se fazia ouvir em alguns cantos do planeta. Na Dinamarca, em 1910, a segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas debateu o ocorrido com as 129 operárias carbonizadas e, para homenageá-las, decidiu criar uma data para refletir sobre o papel da mulher na sociedade. Em 8 de março de 1911, na Europa, mais de um milhão de mulheres celebraram o dia, que passou a ser lembrado no mundo inteiro a partir de então.

E há quem pense que tudo começou aí. Mas desde a revolução francesa, em 1789, as mulheres já vinham questionando seu papel social e reivindicando maior igualdade de direitos. Entretanto, os tempos eram outros. Como os movimentos foram acontecendo – e sendo reprimidos - aos poucos, em diversas partes do mundo, as informações demoravam para chegar e se disseminar. Era a persistência e a determinação das mulheres que levariam, grão a grão, às mudanças que ocorreriam com o passar dos anos.

A quebra de tabus

Dona Lídia passou da fábrica de conservas para uma de palitos, onde permaneceu por cerca de 10 anos até demitir-se para casar. “Na fábrica de palitos tinha muitas mulheres trabalhando. Todo mundo precisava trabalhar pra ajudar em casa”, explica. Ela conta que, diferente do que ocorria nos resto do mundo, as mulheres eram respeitadas no ambiente de trabalho, numa jornada que durava de 8 a 10 horas. Contudo, Lídia ressalta a hostilidade de alguns diante do – ainda pequeno- espaço alcançado pelas mulheres: “Alguns homens achavam ridículo mulheres tomarem banho de mar, de maiô, com os homens ali, junto delas”, lembra. De fato, demorou para que as mudanças se tornassem significativas. Mesmo depois de casada, Lídia continuou trabalhando em casa, criando os três filhos. Posteriormente, trabalhou com limpeza e aposentou-se como costureira. Os trabalhos designados às mulheres ainda tinham um caráter secundário o que só veio a mudar mais tarde, com o avanço da tecnologia e a necessidade de mão-de-obra intelectual. Somente a partir daí é que se criaram condições favoráveis para a inserção do trabalho da mulher em outros setores. Na época de Dona Lídia, a predominância de cargos intelectuais se restringia aos homens. Para as mulheres, restava apenas o magistério. “Na minha época, ser professora era uma coisa maravilhosa”, comenta. Pequeno, porém não menos importante, era um sinal de que as coisas estavam começando a mudar.

O espaço da mulher começa a se solidificar

E de fato, os tempos mudaram. As mulheres com maior grau de escolaridade passaram a assumir cargos de liderança nas escolas, universidades, cidades e até países. Com a independência, veio a redução das taxas de natalidade e a auto-suficiência. A fragilidade e a dependência feminina deram lugar a mulheres fortes e decididas em busca de seu sucesso profissional e pessoal. E os contrariados que se acostumem com isso. Entretanto, isso não quer dizer que a luta chegou ao fim. Por menor que seja, o preconceito e o machismo ainda persistem em algumas culturas. Inclusive aqui. A Lei Maria da Penha não deixa nenhuma mulher brasileira esquecer que ainda existe hostilidade no país.

Dona Lídia provavelmente não verá o dia em que os direitos serão iguais entre homens e mulheres. E talvez muitas jovens de hoje, também não. Porém, o caminho está trilhado. As discussões, aos poucos, estão repercutindo. Que a cada 8 de março, milhões de mulheres como ela possam contar suas histórias de luta e contagiar outras tantas pessoas com a vontade de ter uma sociedade mais justa e igual pra todos.


*Texto publicado no dia 8 de março de 2012, no Jornal Ibiá (Montenegro -RS)

terça-feira, 3 de abril de 2012

Em busca de proteção para lecionar

Dificilmente há alguém que discorde que, para haver alto grau de eficácia na aprendizagem, uma boa relação entre professor e aluno deve ser estabelecida. Entretanto, diferente dos costumes de antigamente, que colocavam o professor como referência de conduta, provedor de todo o conhecimento e merecedor do respeito dos aprendizes, hoje se tornou comum, na mídia, a divulgação de situações de violência contra os docentes, seja esta moral ou até mesmo física. O estopim para essa mudança nas últimas gerações, ainda é um mistério. Contudo, diversos projetos de lei tramitam no governo buscando reconstruir as relações de respeito entre aluno e professor em sala de aula.

O projeto de lei (PL) 267/2011, da deputada Cida Borghetti do Partido Progressista do Paraná, (PP-PR) é um deles. Apresentado em fevereiro do ano passado, o PL estabelece punições para estudantes que desrespeitem professores ou violem regras éticas e de comportamento de instituições de ensino. A proposta muda o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069/90) e inclui o respeito aos códigos de ética e de conduta como responsabilidade e dever da criança e do adolescente que tem a condição de estudante. De acordo com conteúdo publicado no site da deputada, sobre os objetivos da proposta, o projeto poderia ser definido pela palavra “deveres”. “Não estamos falando em punição, e sim, em responsabilidades do aluno. Como há direitos, incluímos os deveres no caso de comportamento agressivo ou perturbador”, afirma Cida Borghetti em material divulgado no site. Para a psicanalista Adriana Bandeira, atuante em Montenegro, quando é necessário buscar auxílio de instância jurídica para determinar comportamentos de responsabilidade e de ética, é porque algo vai mal. “Não podemos deixar de apontar o grande sintoma social que representa, no sentido de tornar dever o que, de fato, estaria no campo do direito. É direito das pessoas tornarem-se cidadãos capazes de respeitar o outro, de fazerem-se aprendizes. Não por isso ou aquilo, mas porque o ser humano é, sempre, sujeito de aprendizagem. Se ela não acontece, há algo errado”, explica.

A educação é feita de relações

A professora de Artes, atuante no Ensino Médio e Fundamental, Tássia Renata Dörr comenta que o projeto está vindo em uma boa hora. “Não vejo mais aquela relação de respeito que havia antigamente. Hoje em dia o aluno não pede mais para ir ao banheiro, ele comunica que está indo. A pergunta se tornou outra porque eles sabem o que querem e falta limites. Então o professor agrega a tarefa de colocar o limite além de educar”, explica a docente de 26 anos. Tássia contabiliza apenas um episódio de problema com a conduta de aluno e reforça a necessidade do professor buscar se integrar na realidade vivida pelo jovem para estreitar laços de confiança e respeito. Ela explica ainda que situações de violência contra o professor sugerem a desconfiança de que o seu desempenho profissional possa estar indo na direção errada. “A gente é sozinho como professor. E quando acontece esse tipo de caso, a gente se cobra até que ponto estamos sendo bons professores. A gente chega num limite”, desabafa. Thais Gaia Schüler é professora de História do Ensino Médio, em Montenegro, e compartilha de muitas das opiniões de Tássia. Ela explica que as relações entre alunos e professores não devem ser pautadas pelo medo, como muito se via antigamente. “É importante buscar ter um bom relacionamento e ser um professor que está próximo da realidade daquele aluno”, afirma. Ela defende o papel dos pais em educar os filhos e darem o exemplo de uma conduta social apropriada. “Muito mais do que um aluno ser um problema, é o meio em que ele vive. Não é somente papel da escola educar. Todo mundo sabe dos seus direitos, mas esquece dos seus deveres”, comenta a jovem de 28 anos.

Em busca de medidas que protejam a docência

A psicanalista Adriana Bandeira explica que professores, enquanto seres da linguagem, buscam engendrar novas perspectivas e entendimentos que, quando não podem ser exercidos, se transformam em dor. “Neste sentido, um projeto de lei que venha transformar em dever o que é de direito, apenas tapa o sol com a peneira. Também é tapar o sol com a peneira as obrigações dispostas aos professores em que devem estudar, participar de cursos e serem agentes de inclusão, quando não são devidamente reconhecidos, remunerados, quando não lhes é disponibilizado tempo para tornarem-se, cada vez mais, agentes da paixão pelo desejo de aprender, principal bem humano.

De fato, leis que prevêem medidas punitivas para crianças e adolescente que não conseguem manter uma conduta aceitável em sala de aula, existem aos montes e, nem mesmo os professores chegam a tomar conhecimento da existência delas. Há um tempo, já tramita no Congresso Nacional o projeto de lei N° 6269/09 que criminaliza a agressão contra professores, dirigentes educacionais, orientadores e agentes administrativos de escolas. Dentro deste projeto de lei, a pena prevista é de quatro anos de detenção (em casos de agressão física) e de três anos (em caso de agressão moral). Outro exemplo é o projeto de lei do Senado 191/2009 que cria barreiras e punições contra alunos que cometerem agressões contra docentes. Esse PL foi aprovado pela Comissão de Educação e Cultura do Senado e não exclui as punições já previstas no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A grande dúvida que fica é o motivo de existirem tantos projetos e nenhuma lei, de fato, em vigor, que proteja o professor de violências. Uma boa resposta seria a demora para que esses projetos saiam do papel e se tornem, efetivamente, leis. Afinal, dos três projetos mencionados, um já foi arquivado e os outros dois continuam em análise pelo governo.

Projetos de Lei que visam a proteção do professor

PLS 191/2009: Estabelece procedimentos de socialização e de prestação jurisdicional e prevê medidas protetivas para os casos de violência contra o professor oriunda da relação de educação.
Apresentado em 12/05/2009
Situação atual: Matéria com a Relatoria da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH)

PL 6269/2009: Tipifica o crime de desacato ao educador mediante ato de agressão física e/ou moral no exercício da função ou em razão dela
Apresentado em 21/10/2009
Situação atual: Arquivada na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados (MESA)

PL 267/2011: Acrescenta o art. 53-A a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que "dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências", a fim de estabelecer deveres e responsabilidades à criança e ao adolescente estudante.
Apresentado em 08/02/2011
Situação atual: Aguardando Encaminhamento na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF)

FONTES: www.senado.gov.br ; www.camara.gov.br



* Matéria publicada no Jornal Ibiá (Montenegro - RS), em 30 de março de 2012.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A certeza capaz de mudar uma vida

Às seis horas da manhã do dia 30 de dezembro, ele já estava na maca, esperando pra entrar no bloco cirúrgico quando se deu conta do que estava acontecendo. Toda a ansiedade que aparentemente não existira durante todos os meses de espera, surgia naquele momento. “Vou sentir alguma dor?”, perguntou ao anestesista. Por detrás da máscara, o médico calmamente respondeu que não e completou: “Luciano, não te preocupa, lá pelas quatro da tarde, tu vai ser Luciana”.
Há pouco mais de um mês, a cabeleireira de um salão de beleza de Montenegro, desfila o corpo condizente com a personalidade feminina que diz ter desde criança. O que pra muitos é tratado simplesmente como transexualismo, para o Ministério da Saúde é conhecido como Transtorno de identidade ou de gênero. Trata-se de uma inadequação entre o sexo físico e o psíquico, de origem psicológica, que normalmente se manifesta na infância.
Aos 11 anos, Luciana escondia-se para usar os sapatos de salto da mãe e pintar as unhas de vermelho. O estranhamento dos meninos na escola a respeito do jeito diferente, a fez começar a se questionar. “É muito difícil porque no começo tu não tem nenhuma explicação. Tu te acha a única no mundo. Pensa que aquilo ali é um problema gravíssimo, que tu está doente, que tem alguma coisa errada”, conta a jovem de 29 anos.
Segundo artigo publicado na revista de maior circulação entre os médicos (The New England Journal of Medicine), as causas do transtorno ainda são desconhecidas. Estudos sugerem que o distúrbio pode estar associado a alterações da arquitetura cerebral. Entretanto, são apenas hipóteses. As origens da transexualidade ainda são um mistério. A identificação com o gênero oposto não pode ser explicada por alterações hormonais, nem por anormalidades nos cromossomos, como muita gente pensa.

A necessidade do apoio

Até chegar à sala de cirurgia, Luciana trilhou um caminho difícil e cheio de obstáculos. Aos 14 anos foi questionada a respeito de sua sexualidade pelo pai. A resposta, dita com sinceridade pela adolescente, soou impactante. “Eu não tenho mais filho, então”, respondeu o patriarca. Desde então, nunca mais teve contato com ele. “Naquele momento eu tomei minha decisão. E dali por diante só foi uma melhora, inclusive pessoal, pois tu deixas de te esconder pra ganhar teu espaço no mundo”, conta a moça. A situação delicada foi um fato isolado na vida. A mãe, os irmãos, a tia e até a avó aceitaram a escolha de Luciana que diz ter superado o incidente. “Pra que eu ia dar bola pra uma única pessoa. Hoje eu o tenho como um estranho. Superei tranquilamente.Depois da cirurgia, até melhor”.
Na adolescência, o convívio com outros homossexuais mostrou que a diferença era mais comum do que ela podia imaginar. A curiosidade fez com que, aos poucos, fosse aprendendo com aqueles que sofriam com os mesmos questionamentos e descobriu que se tratava apenas de algo fora do conceito de normalidade da maioria. “Tu vai se conhecendo, eles vão te explicando e tu acaba enxergando outro mundo. Tu vê que não é só contigo, que tem outras pessoas. Só que no decorrer disso, ser homossexual é uma coisa, ser uma mulher no corpo de um homem é outra. Não é só a preferência.” De fato, o transtorno de gênero é diferente de qualquer outro conceito por não se tratar de uma escolha meramente sexual com relação ao sexo oposto. Luciana comenta que a maioria dos homossexuais são ativos e passivos, enquanto ela sempre se sentiu atraída por homens como qualquer mulher normal.

A decisão pela cirurgia

Aos 18 anos, através dos amigos, Luciana descobriu que o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) oferecia um programa de tratamento para pessoas com Transtorno de gênero. Entretanto, apenas há 3 anos a decisão foi realmente tomada. Através da motivação e do esforço da proprietária do salão onde trabalha, Irmgard Klabunde, a jovem foi, pela primeira vez, conversar com um médico sobre o assunto que conhecia apenas em partes. Posteriormente, foi encaminhada à Assistência Social de Montenegro, onde teve o aval para começar a freqüentar o programa no hospital da capital. Todo o tratamento é custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) que acredita, juntamente com a medicina, que viver com esse tipo de transtorno é viver em sofrimento crônico. A triagem dos pacientes a serem operados é intensa e pode durar cerca de 3 anos, como foi o caso da cabeleireira. “Tu passa, sucessivamente por muitas consultas com psicólogos e com psiquiatras. E eles te afirmam o tempo todo que tu é homem, mas isso é pra tu teres a tua certeza. Tanto que eu me lembro,no começo, eles me chamavam de Luciano e eu ficava lá sentada e dizia que não tinha nenhum Luciano ali.” A terapia de grupo assistida por profissionais é uma forma de proporcionar o auto-conhecimento dos pacientes que estão sendo avaliados.

A mudança de sexo

No mundo, a primeira cirurgia foi realizada em 1952. Na Dinamarca, George se tornou Christine Jorgensen e, no ano seguinte, foi eleita a Mulher do Ano por diversos jornais e revistas. A história se espalhou e surgiram milhares de candidatos à operação.
Quase 20 anos depois o procedimento chegou ao Brasil e sofreu alterações ao longo de sua inserção no meio médico. Até os anos 70, a cirurgia de alteração do sexo masculino para o feminino consistia na amputação do pênis e a modelação de um orifício funcional. Na década seguinte, a modelo Roberta Close mostrou o novo método para o país, na revista Playboy de 1984 com a construção de um feixe de tecidos semelhante ao clitóris. Atualmente, o desafio é reproduzir esteticamente uma vagina, preservando as terminações nervosas para garantir o prazer sexual. No entanto, a ingestão de hormônios é realizada tempo antes para modificar a estrutura do organismo que passará a atuar de forma diferente. A intervenção cirúrgica é o último estágio do processo de mudança de sexo. Para Luciana, tudo ocorreu da melhor maneira possível por causa do suporte que teve de toda equipe médica durante o programa. “Eu apaguei, acordei às três e meia da tarde. Daí tu coloca a mão ali e te dá uma sensação de felicidade. Virou uma página na tua vida. Depois eu fiquei lá sozinha e fiquei pensando que tu tens que ser muito homem pra fazer essa cirurgia. A cabeça da gente é muito louca. Se fosse outra pessoa qualquer, não iria fazer.”, comenta.

A repercussão

Luciana afirma que muitas pessoas que fizeram o programa com ela, desistiram no meio do processo. A certeza do gênero que se tem, nem sempre é um diagnóstico fácil de fazer em si mesmo. Entretanto, pros que têm absoluta certeza do que são, a cirurgia de mudança de sexo é a porta para uma vida nova. “É tudo novo.Desde o xixi até o absorvente que eu tive que usar. Mas pra mim foi bem fácil. Eu podia ter um órgão masculino, mas eu nunca usei como masculino. Foi fácil me adequar. Quando eu tirei a sonda 14 dias depois, o primeiro xixi eu imaginei que ia doer. Prendi a respiração e fiquei pensando na dor. Não doeu.” Mesmo após a cirurgia, o acompanhamento ainda é constante por conta do processo de cicatrização. Contudo, a receptividade dos amigos ajuda a reafirmar a decisão da jovem em assumir, buscar e alcançar a solução para o problema. A própria chefe de Luciana, admite que agora ela parece mais feliz, mais completa. Nem mesmo a questão do preconceito de alguns desfaz a mágica da nova realidade em que vive agora. Ainda segundo estudos médicos, o tratamento cirúrgico melhora a qualidade de vida da maioria dos que optaram por ele. Quando bem indicado, apenas 1 a 2% confessam arrependimento. Certamente esse não é o caso em questão. A felicidade estampada nos olhos e a tranqüilidade em falar sobre o assunto, mostram que Olga Luciana Klung – como estará registrado em sua documentação em breve – está certa a respeito do que é e feliz por ter conseguido enfrentar toda essa batalha de peito aberto. “Hoje eu vejo que tudo isso foi bom pra mim, porque aprendi a me conhecer mais. Tu aprende a lidar melhor com tudo. Tu avalia as coisas que já fez pra saber o motivo de estar ali. O importante é o que eu penso de mim. Isso é o que realmente importa.”



*Texto publicado na edição do Jornal Ibiá, de Montenegro - RS, no dia 23 de fevereiro de 2012.