sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

A certeza capaz de mudar uma vida

Às seis horas da manhã do dia 30 de dezembro, ele já estava na maca, esperando pra entrar no bloco cirúrgico quando se deu conta do que estava acontecendo. Toda a ansiedade que aparentemente não existira durante todos os meses de espera, surgia naquele momento. “Vou sentir alguma dor?”, perguntou ao anestesista. Por detrás da máscara, o médico calmamente respondeu que não e completou: “Luciano, não te preocupa, lá pelas quatro da tarde, tu vai ser Luciana”.
Há pouco mais de um mês, a cabeleireira de um salão de beleza de Montenegro, desfila o corpo condizente com a personalidade feminina que diz ter desde criança. O que pra muitos é tratado simplesmente como transexualismo, para o Ministério da Saúde é conhecido como Transtorno de identidade ou de gênero. Trata-se de uma inadequação entre o sexo físico e o psíquico, de origem psicológica, que normalmente se manifesta na infância.
Aos 11 anos, Luciana escondia-se para usar os sapatos de salto da mãe e pintar as unhas de vermelho. O estranhamento dos meninos na escola a respeito do jeito diferente, a fez começar a se questionar. “É muito difícil porque no começo tu não tem nenhuma explicação. Tu te acha a única no mundo. Pensa que aquilo ali é um problema gravíssimo, que tu está doente, que tem alguma coisa errada”, conta a jovem de 29 anos.
Segundo artigo publicado na revista de maior circulação entre os médicos (The New England Journal of Medicine), as causas do transtorno ainda são desconhecidas. Estudos sugerem que o distúrbio pode estar associado a alterações da arquitetura cerebral. Entretanto, são apenas hipóteses. As origens da transexualidade ainda são um mistério. A identificação com o gênero oposto não pode ser explicada por alterações hormonais, nem por anormalidades nos cromossomos, como muita gente pensa.

A necessidade do apoio

Até chegar à sala de cirurgia, Luciana trilhou um caminho difícil e cheio de obstáculos. Aos 14 anos foi questionada a respeito de sua sexualidade pelo pai. A resposta, dita com sinceridade pela adolescente, soou impactante. “Eu não tenho mais filho, então”, respondeu o patriarca. Desde então, nunca mais teve contato com ele. “Naquele momento eu tomei minha decisão. E dali por diante só foi uma melhora, inclusive pessoal, pois tu deixas de te esconder pra ganhar teu espaço no mundo”, conta a moça. A situação delicada foi um fato isolado na vida. A mãe, os irmãos, a tia e até a avó aceitaram a escolha de Luciana que diz ter superado o incidente. “Pra que eu ia dar bola pra uma única pessoa. Hoje eu o tenho como um estranho. Superei tranquilamente.Depois da cirurgia, até melhor”.
Na adolescência, o convívio com outros homossexuais mostrou que a diferença era mais comum do que ela podia imaginar. A curiosidade fez com que, aos poucos, fosse aprendendo com aqueles que sofriam com os mesmos questionamentos e descobriu que se tratava apenas de algo fora do conceito de normalidade da maioria. “Tu vai se conhecendo, eles vão te explicando e tu acaba enxergando outro mundo. Tu vê que não é só contigo, que tem outras pessoas. Só que no decorrer disso, ser homossexual é uma coisa, ser uma mulher no corpo de um homem é outra. Não é só a preferência.” De fato, o transtorno de gênero é diferente de qualquer outro conceito por não se tratar de uma escolha meramente sexual com relação ao sexo oposto. Luciana comenta que a maioria dos homossexuais são ativos e passivos, enquanto ela sempre se sentiu atraída por homens como qualquer mulher normal.

A decisão pela cirurgia

Aos 18 anos, através dos amigos, Luciana descobriu que o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) oferecia um programa de tratamento para pessoas com Transtorno de gênero. Entretanto, apenas há 3 anos a decisão foi realmente tomada. Através da motivação e do esforço da proprietária do salão onde trabalha, Irmgard Klabunde, a jovem foi, pela primeira vez, conversar com um médico sobre o assunto que conhecia apenas em partes. Posteriormente, foi encaminhada à Assistência Social de Montenegro, onde teve o aval para começar a freqüentar o programa no hospital da capital. Todo o tratamento é custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) que acredita, juntamente com a medicina, que viver com esse tipo de transtorno é viver em sofrimento crônico. A triagem dos pacientes a serem operados é intensa e pode durar cerca de 3 anos, como foi o caso da cabeleireira. “Tu passa, sucessivamente por muitas consultas com psicólogos e com psiquiatras. E eles te afirmam o tempo todo que tu é homem, mas isso é pra tu teres a tua certeza. Tanto que eu me lembro,no começo, eles me chamavam de Luciano e eu ficava lá sentada e dizia que não tinha nenhum Luciano ali.” A terapia de grupo assistida por profissionais é uma forma de proporcionar o auto-conhecimento dos pacientes que estão sendo avaliados.

A mudança de sexo

No mundo, a primeira cirurgia foi realizada em 1952. Na Dinamarca, George se tornou Christine Jorgensen e, no ano seguinte, foi eleita a Mulher do Ano por diversos jornais e revistas. A história se espalhou e surgiram milhares de candidatos à operação.
Quase 20 anos depois o procedimento chegou ao Brasil e sofreu alterações ao longo de sua inserção no meio médico. Até os anos 70, a cirurgia de alteração do sexo masculino para o feminino consistia na amputação do pênis e a modelação de um orifício funcional. Na década seguinte, a modelo Roberta Close mostrou o novo método para o país, na revista Playboy de 1984 com a construção de um feixe de tecidos semelhante ao clitóris. Atualmente, o desafio é reproduzir esteticamente uma vagina, preservando as terminações nervosas para garantir o prazer sexual. No entanto, a ingestão de hormônios é realizada tempo antes para modificar a estrutura do organismo que passará a atuar de forma diferente. A intervenção cirúrgica é o último estágio do processo de mudança de sexo. Para Luciana, tudo ocorreu da melhor maneira possível por causa do suporte que teve de toda equipe médica durante o programa. “Eu apaguei, acordei às três e meia da tarde. Daí tu coloca a mão ali e te dá uma sensação de felicidade. Virou uma página na tua vida. Depois eu fiquei lá sozinha e fiquei pensando que tu tens que ser muito homem pra fazer essa cirurgia. A cabeça da gente é muito louca. Se fosse outra pessoa qualquer, não iria fazer.”, comenta.

A repercussão

Luciana afirma que muitas pessoas que fizeram o programa com ela, desistiram no meio do processo. A certeza do gênero que se tem, nem sempre é um diagnóstico fácil de fazer em si mesmo. Entretanto, pros que têm absoluta certeza do que são, a cirurgia de mudança de sexo é a porta para uma vida nova. “É tudo novo.Desde o xixi até o absorvente que eu tive que usar. Mas pra mim foi bem fácil. Eu podia ter um órgão masculino, mas eu nunca usei como masculino. Foi fácil me adequar. Quando eu tirei a sonda 14 dias depois, o primeiro xixi eu imaginei que ia doer. Prendi a respiração e fiquei pensando na dor. Não doeu.” Mesmo após a cirurgia, o acompanhamento ainda é constante por conta do processo de cicatrização. Contudo, a receptividade dos amigos ajuda a reafirmar a decisão da jovem em assumir, buscar e alcançar a solução para o problema. A própria chefe de Luciana, admite que agora ela parece mais feliz, mais completa. Nem mesmo a questão do preconceito de alguns desfaz a mágica da nova realidade em que vive agora. Ainda segundo estudos médicos, o tratamento cirúrgico melhora a qualidade de vida da maioria dos que optaram por ele. Quando bem indicado, apenas 1 a 2% confessam arrependimento. Certamente esse não é o caso em questão. A felicidade estampada nos olhos e a tranqüilidade em falar sobre o assunto, mostram que Olga Luciana Klung – como estará registrado em sua documentação em breve – está certa a respeito do que é e feliz por ter conseguido enfrentar toda essa batalha de peito aberto. “Hoje eu vejo que tudo isso foi bom pra mim, porque aprendi a me conhecer mais. Tu aprende a lidar melhor com tudo. Tu avalia as coisas que já fez pra saber o motivo de estar ali. O importante é o que eu penso de mim. Isso é o que realmente importa.”



*Texto publicado na edição do Jornal Ibiá, de Montenegro - RS, no dia 23 de fevereiro de 2012.