quinta-feira, 12 de abril de 2012

A incrível arte de ser mulher

“Elas vinham num panelão grande, com água quente – pra tirar a banha que tinha dentro – daí a gente deixava esfriar e no outro dia ia botando em cima de uma mesa grande. E o chefe ficava ali do lado. Às vezes, ele até nos ajudava a rotular as latas”, conta, com voz rouca, Lídia Lúcia Schu, de 96 anos. A moradora de Montenegro, natural dos arredores de Taquari, junto com mais cinco outras moças, fez parte do grupo das primeiras mulheres a serem empregadas em uma fábrica de conservas da cidade, por volta de 1935. “Não havia moças trabalhando. Então, meu cunhado, que trabalhava lá, ficou encarregado de encontrar seis moças – de família – pra ajudar com as latas de conserva”.

Dona Lídia presenciou uma parte importante da história da participação da mulher na sociedade. Viu as saias diminuírem de comprimento, os sapatos ganharem saltos altíssimos, os pais deixarem as filhas irem sozinhas aos bailes e as parteiras darem espaço às clínicas obstétricas.
A vida da única remanescente dos oito filhos do casal de agricultores, mãe de três filhos, avó de três netos e quatro bisnetos remonta a trajetória de lutas das mulheres em busca de igualdade de direitos perante a sociedade. É, também, um registro da evolução do papel da mulher na história de Montenegro.

Para tanto, as mudanças na realidade feminina demoraram para começar a engrenar. A Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, abriu as portas das fábricas para operárias mulheres que, mesmo com salários até 60% menores que o dos homens, ganharam o direito de trabalhar fora de casa. Com isso, o preconceito e a discriminação masculina chegaram a níveis assustadores. Em uma fábrica de Nova Iorque, 129 tecelãs se mobilizaram em uma greve em prol de melhores condições de trabalho e redução da carga horária de 12 horas diárias. Como reprimenda e forma de coibir esse tipo de protesto, a polícia e os patrões trancaram as funcionárias dentro da fábrica e atearam fogo. Todas elas morreram carbonizadas. Esse dia era 8 de março de 1857.

Uma luta que começou sem prazo para terminar

Dona Lídia nasceu no 12° dia do mês dezembro, no ano de 1915. Veio para Montenegro com 17 anos. Até então, a realidade feminina se resumia em maternidade e cuidados com o lar. Fazer um bom casamento era sinal de encaminhar a vida, e sair desacompanhada dos pais ou do marido era mal visto e inviável diante da condição social imposta à mulher. “Antes de vir morar em Montenegro, eu ficava ansiosa esperando pelos bailes. As moças iam de carreta e os pais tinham que ir junto. A gente ia com uma roupa e lá pela meia noite trocávamos para uma vestimenta de festa”, conta.

Antes mesmo de Dona Lídia ir ao seu primeiro baile, uma revolução feminina já se fazia ouvir em alguns cantos do planeta. Na Dinamarca, em 1910, a segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas debateu o ocorrido com as 129 operárias carbonizadas e, para homenageá-las, decidiu criar uma data para refletir sobre o papel da mulher na sociedade. Em 8 de março de 1911, na Europa, mais de um milhão de mulheres celebraram o dia, que passou a ser lembrado no mundo inteiro a partir de então.

E há quem pense que tudo começou aí. Mas desde a revolução francesa, em 1789, as mulheres já vinham questionando seu papel social e reivindicando maior igualdade de direitos. Entretanto, os tempos eram outros. Como os movimentos foram acontecendo – e sendo reprimidos - aos poucos, em diversas partes do mundo, as informações demoravam para chegar e se disseminar. Era a persistência e a determinação das mulheres que levariam, grão a grão, às mudanças que ocorreriam com o passar dos anos.

A quebra de tabus

Dona Lídia passou da fábrica de conservas para uma de palitos, onde permaneceu por cerca de 10 anos até demitir-se para casar. “Na fábrica de palitos tinha muitas mulheres trabalhando. Todo mundo precisava trabalhar pra ajudar em casa”, explica. Ela conta que, diferente do que ocorria nos resto do mundo, as mulheres eram respeitadas no ambiente de trabalho, numa jornada que durava de 8 a 10 horas. Contudo, Lídia ressalta a hostilidade de alguns diante do – ainda pequeno- espaço alcançado pelas mulheres: “Alguns homens achavam ridículo mulheres tomarem banho de mar, de maiô, com os homens ali, junto delas”, lembra. De fato, demorou para que as mudanças se tornassem significativas. Mesmo depois de casada, Lídia continuou trabalhando em casa, criando os três filhos. Posteriormente, trabalhou com limpeza e aposentou-se como costureira. Os trabalhos designados às mulheres ainda tinham um caráter secundário o que só veio a mudar mais tarde, com o avanço da tecnologia e a necessidade de mão-de-obra intelectual. Somente a partir daí é que se criaram condições favoráveis para a inserção do trabalho da mulher em outros setores. Na época de Dona Lídia, a predominância de cargos intelectuais se restringia aos homens. Para as mulheres, restava apenas o magistério. “Na minha época, ser professora era uma coisa maravilhosa”, comenta. Pequeno, porém não menos importante, era um sinal de que as coisas estavam começando a mudar.

O espaço da mulher começa a se solidificar

E de fato, os tempos mudaram. As mulheres com maior grau de escolaridade passaram a assumir cargos de liderança nas escolas, universidades, cidades e até países. Com a independência, veio a redução das taxas de natalidade e a auto-suficiência. A fragilidade e a dependência feminina deram lugar a mulheres fortes e decididas em busca de seu sucesso profissional e pessoal. E os contrariados que se acostumem com isso. Entretanto, isso não quer dizer que a luta chegou ao fim. Por menor que seja, o preconceito e o machismo ainda persistem em algumas culturas. Inclusive aqui. A Lei Maria da Penha não deixa nenhuma mulher brasileira esquecer que ainda existe hostilidade no país.

Dona Lídia provavelmente não verá o dia em que os direitos serão iguais entre homens e mulheres. E talvez muitas jovens de hoje, também não. Porém, o caminho está trilhado. As discussões, aos poucos, estão repercutindo. Que a cada 8 de março, milhões de mulheres como ela possam contar suas histórias de luta e contagiar outras tantas pessoas com a vontade de ter uma sociedade mais justa e igual pra todos.


*Texto publicado no dia 8 de março de 2012, no Jornal Ibiá (Montenegro -RS)

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