quinta-feira, 31 de maio de 2012

Superação como condição para sobreviver

“Estamos aqui para ajudar nossas famílias que ficaram lá! Essa é a nossa responsabilidade”, afirma Ezechiel Charles, um dos 24 haitianos que foram trazidos para Montenegro, para trabalhar na empresa Agrogen. Ainda em processo de adaptação com a língua e, principalmente, com o frio, os novos “gaúchos” trazem no olhar as marcas do caminho trilhado até o Brasil, e no sorriso a esperança de dias melhores.
Ivia Olivier, Mariciledesir, Aldajuste Nasson e Jean Wener Chal, junto com Ezechiel, acreditaram nas promessas de sucesso, dinheiro e prosperidade que circulavam em seu país a respeito do Brasil. Nenhum deles se conhecia, porém, todos compartilhavam o sonho de ajudar a família a sobreviver com os ilusórios salários de cerca de R$ 3 mil supostamente pagos por aqui. Vieram de forma independente, sem contrato ou vinculação com qualquer empresa, sem lugar para ficar ou contato de conhecido brasileiro que pudesse auxiliar. Um pouco de dinheiro para pagar as passagens e muita vontade de mudar de vida era tudo o que traziam na bagagem. 

Saíram do Haiti em janeiro deste ano sem data para retornar. Fizeram, de avião, uma rota bastante conhecida entre os haitianos. Passaram pela República Dominicana, Panamá e Peru, onde entraram em terras brasileiras através do Acre. “Nosso país é muito pobre. Já era antes do terremoto, mas ainda conseguíamos levar a vida. Depois da catástrofe, nos vimos obrigados a deixar o Haiti para buscar melhores condições. Era a única esperança”, explica Ezechiel.
No trajeto até a fronteira do Peru com o Brasil, tudo ocorria bem até perceberem que o suborno de peruanos, para atravessar o limite entre os dois países, era rotina. “O governo peruano não deixou eles entrarem aqui. Vieram de forma ilegal, com os coiotes. Eles contam que pagaram 100 dólares para poderem atravessar a fronteira”, comenta Charles Eduardo Stefanello, coordenador de produção da Agrogen, que foi buscá-los no Acre. O impasse para sair do Peru e chegar à Brasiléia, cidade brasileira na fronteira com o estado nortista, custou todo o dinheiro que traziam consigo e três meses dormindo na rua e trabalhando exclusivamente por comida até a situação se resolver.

Pelo mundo em busca de um sonho maior
Ezechiel tem apenas 25 anos. Cursou até o segundo ano da faculdade de Ciência da Computação, no Haiti. Ele conta que, antes do terremoto que devastou seu país, em janeiro de 2010, a vida era difícil. Entretanto, após a catástrofe, a situação se tornou insustentável.
“Depois do tremor, tivemos medo que houvesse outro e fomos obrigados a sair do país e buscar outra alternativa”, lembra. Emocionado, ele afirma que perdeu pessoas queridas no desastre e que a pobreza, o desemprego e a violência atingiram níveis assustadores e sem perspectivas de solução.
O jovem é um dos únicos imigrantes que possui um grau de instrução mais elevado. É tido como um dos líderes por ter conhecimento de outras línguas, entre elas a espanhola e o inglês, o que o torna um facilitador da comunicação entre os funcionários brasileiros e os haitianos, na Agrogen. 
Curioso, ele faz perguntas sobre o Brasil, questiona como é viver em São Paulo e se mostra esperançoso com a vida que se projeta daqui para frente. “O motivo principal de estar aqui é juntar dinheiro para conseguir continuar meus estudos e ajudar a minha família”, afirma. Concluir a faculdade deixou de ser algo possível para se tornar um sonho distante.
Os outros, em sua maioria, eram comerciantes em suas respectivas cidades e, como Ezechiel, perderam junto com parentes e bens materiais a perspectiva de felicidade pela qual vinham batalhando até perderem tudo com o terremoto. O que restou, além dos escombros, foram esperança e força. Muita força.

Ações em nome de um futuro
Jean Chal tem 40 anos. Tem, também, nos olhos, marcas de saudade. “Tenho esposa e três filhos. Como faço para trazê-los para cá?”, questiona, auspicioso.  Charles comenta que os trouxe a Montenegro para adquirirem um celular cada um. Jean gastou todos os créditos que colocou, no dia da compra, para falar com a família.
Marcos Antonio Matte, líder de produção da Agrogen, também conta que frequentemente é solicitado para ajudar a realizar ligações para o Haiti. “Esses dias, um deles vibrava ao conseguir completar a ligação. Acenava para mim com os polegares, sorrindo, por ter conseguido”, lembra.
O coordenador de produção também menciona outra moça do grupo, que quase desistiu do emprego na granja por achar que não conseguiria trabalhar na função para qual foi designada. “Ela disse que nunca tinha trabalhado na vida. Provavelmente a família tinha um poder aquisitivo maior para ela nunca ter precisado batalhar por dinheiro”, especula Charles.
De fato, a história diferente que cada um conta é uma amostra da realidade difícil que paira sobre o pequeno país, e o quanto de suas vidas está sendo sacrificada nessa tentativa de recomeçar. Quando foram propostos para o emprego no Rio Grande do Sul, havia 250 haitianos no alojamento, em Rio Branco, no Acre. Os 24 que se interessaram em vir para o Estado tiveram seus documentos regularizados na imigração, ganharam visto e carteira de trabalho. Agora são como qualquer outro cidadão, com direitos e deveres, porém, alguns medos e receios a mais. “Tem racismo no Brasil? Se algum dia eu for vítima de preconceito aqui, volto pro Haiti”, afirma Ezechiel. “Os brasileiros são sensíveis, compreensivos, nos ajudam e são alegres como nós”, termina.

Recrutamento foi até o Acre
A dificuldade de contratar mão de obra para algumas unidades produtivas aqui no Estado, e também em Minas Gerais, fez a Agrogen buscar uma alternativa inusitada. Foi assim que surgiu a ideia de dar uma oportunidade de trabalho para haitianos. A seleção foi realizada em abril, em Rio Branco (Acre)e, desde o final do mês passado, eles se encontram em solo gaúcho, em três unidades da empresa.
A coordenadora de Recursos Humanos da Agrogen, Vanessa Lermen, conta que leu uma reportagem sobre a migração de haitianos para o Brasil em busca de emprego e uma nova vida, já que seu país fora devastado por dois terremotos em 2010. Daí surgiu a ideia de buscar a contratação dessas pessoas. “Eu estava no Paraná e conversando com uma consultora sobre a dificuldade de contratar mão de obra. Então ela comentou que havia escutado boas referências sobre a mão de obra dos haitianos. Pensamos que seria uma ideia boa aliarmos a oportunidade de ajudarmos essas pessoas e resolver o nosso problema com a escassez de trabalhadores, que atinge o setor avícola”, explica.
A partir daí, foi feito contato com o governo do Acre, que serve de porta de entrada para os haitianos no país. “Fomos atendidos pelo secretário municipal de Brasiléia, cidade que se especializou em acolher os haitianos que nos informou que os mesmos estariam entrando no país por Rio Branco, sua capital. Na medida que o governo federal fosse autorizando a entrada deles, que estavam na fronteira do Brasil com o Peru, fariam contato para que fossemos recrutá-los”, conta Vanessa.
A liberação da entrada dos haitianos no Brasil foi feita apenas no dia 17 de abril, para 240 pessoas. Assim, no dia 18 de abril, o coordenador de produção da Agrogen, Charles Stefanello, e Juliana Coser, do setor de Recursos Humanos da empresa, foram até Rio Branco, para selecionar e recrutar os haitianos. Dos 32 contratados, dez foram para as unidades de Montenegro, dez para São Francisco de Paula, quatro para Triunfo e oito para Sete lagoas (MG).

Sobre o Haiti
- O Haiti é o país mais pobre das Américas. Ao mesmo tempo, foi a primeira república negra do mundo a declarar sua independência.
- Cerca de 80% da população vive em situação de extrema pobreza com menos de dois dólares por dia e situa-se em uma área no globo que é bastante propícia a ser atingida por furações e terremotos.
- Uma das línguas oficiais do país é o Francês, porém, apenas 10% da população a utiliza. A maioria fala o Crioulo, língua oficial junto com o idioma da minoria.
- Desde junho de 2004, Argentina, Benim, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Croácia, Equador, Espanha, França, Guatemala, Jordânia, Marrocos, Nepal, Paraguai, Peru, Filipinas, Sri Lanka, Estados Unidos e Uruguai compõem as tropas que integram a Missão de Paz no Haiti. É uma iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) para reconstruir e estabilizar a República. 
- Em janeiro de 2010, um tremor de terra de 7 graus na escala Richter devastou o país e agravou a situação dos mais de 10 milhões de haitianos. No desastre, pelo menos 200 mil pessoas morreram, 800 mil ficaram feridas, 4 mil foram amputadas e quase 2 milhões desabrigadas. E esse número de óbitos só contabiliza os sepultados oficialmente. Os que nunca foram retirados dos escombros nem os que foram enterrados pelas famílias estão incluídos. Se contados, o número estimado chega a quase 700 mil mortos. Foi a terceira maior catástrofe do mundo.

CNIg aprovou concessão de vistos
 
Segundo a coordenadora de Recursos Humanos da Agrogen, Vanessa Lermen, a idade dos haitianos trazidos pela empresa para o Estado e para a cidade de Sete Lagoas, em Minas Gerais, varia de 22 a 52 anos, sendo 26 homens e seis mulheres.
Vanessa conta que a contratação foi realizada no regime de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), “com todos os benefícios legais e, em alguns casos, com acompanhamento psicológico. Por causa de algumas denúncias de promessas não cumpridas por parte de algumas empresas, o Ministério do Trabalho monitora todas as empresas contratantes”, explica.
O processo de espera por uma oportunidade de trabalho não é dos melhores. De acordo com Vanessa, em Rio Branco, os haitianos recém-chegados recebem assistência médica, alimentação e hospedagem em uma pousada onde cabem até 80 pessoas precariamente. “Lá, eles fazem exame para detectar Aids, Cólera e outras doenças, além de tomar vacinas contra Hepatite, Tétano e Febre Amarela”, conta.
Segundo ela ainda, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), órgão ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego (TEM), aprovou  a concessão de 1.200 vistos por ano para haitianos que pretendem migrar para o Brasil. O documento, válido por cinco anos, dá direito de o estrangeiro trabalhar e trazer a família para o país pelo mesmo período.

*Matéria publicada no Jornal Ibiá (Montenegro -RS) de 10 de maio de 2012, em co-autoria com Pedro Giumelli, no qual participei fazendo a entrevista com os haitianos. Matéria com fotos aqui


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